O clima de golpismo faz parte do DNA do governo Bolsonaro desde antes das eleições, quando o então candidato a vice, o general Mourão, deu uma declaração admitindo a possibilidade de um autogolpe em caso de “anarquia”. No ano passado, Hamilton Mourão gravou vídeo convocando “cidadãos de bem” a participarem das manifestações antidemocráticas de 15 de março (assista aqui).
Depois vieram declarações de várias figuras defendendo o AI-5. Agora, o que prevalece entre bolsonaristas é a narrativa da declaração de Estado de Sítio e do uso conveniente do Artigo 142 da Constituição Federal, que deixa uma fresta para uma intervenção militar. Manifestações pró-Bolsonaro sempre mostram cartazes com a frase “eu autorizo”. A campanha de difamação do sistema eleitoral também é alvo das milícias digitais defendendo o voto impresso e desacreditando as urnas eletrônicas.
Antes inexpressivos e eleitores de Bolsonaro, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, e os seus sucessores Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, agora são beneficiários diretos da imagem de guardiões da democracia. O ar de golpismo do governo Bolsonaro os beneficia, mas não são os únicos a brilhar.
Golpismo fake sabota impeachment e maquia genocídio
O improvável impeachment de Bolsonaro significaria o fim do sonho da reeleição. Enquanto o presidente se entrega ao centrão para se manter em pé, o Alto Comando do Exército vai dando um jeito de se distanciar do genocídio, mas ao contrário do que tentam transparecer, não se distanciam do poder.
Como capitão e generais são partes de um mesmo todo, é preciso prestar atenção ao lado prático do que pode estar em jogo com a voluntariosa entrega de cargos dos magnânimos patriotas das Forças Armadas. Um dos generais disse à Natuza Nery, da GloboNews, que “foi traumático” entregar o cargo. Entretanto, os generais não demonstram a mesma preocupação com os cadáveres que se empilham em todo o País.
Em um ato pensado para soar nobre, o alto comando manda dizer que não quer patrocinar o golpismo. Mas ao abandonar o ‘barco’, não estariam os nobres generais abrindo o caminho para que o ex-capitão extremista coloque em prática suas intenções golpistas com ajuda das Forças Armadas? A conta não fecha. Não seria melhor para a democracia se resistissem firmes nos cargos às investidas autoritárias do paraquedista maluco?
O script da guerra híbrida é imprevisível. Ela teve início lá atrás, em 2016, quando ninguém lembrava mais que existiam generais no País, um tempo no qual policiais e militares se contentavam com cargos municipais e estaduais, e generais ameaçavam o STF pelo Twitter.
Dois golpes em um
Reeleger Bolsonaro em 2022, livrando-o do impeachment agora, seria o primeiro passo para as Forças Armadas se manter no poder e garantir as benesses estatais enquanto os demais servidores federais padecem com congelamentos de salários. Estar no poder significa ter uma fatia generosa do disputado orçamento da União.
Orçamento
Somente para o Ministério da Defesa, serão destinados R$ 8,32 bilhões em recursos, num total de R$ 37,6 bilhões. Ou seja,22% das verbas federais para investimentos vão para a pasta.
Mesmo com a liberação de uma fatia generosa do Orçamento da União para a Defesa, parte da tropa das Forças Armadas anda decepcionada. Querem mais. Os militares se sentem desprestigiados desde o início de uma reestruturação das carreiras em janeiro de 2020
Livrar o capitão do impeachment é o primeiro golpe, e o segundo é influenciar, pelo subterrâneo do poder, para que Lula não seja candidato em 2022. Mas para chegar às eleições, Bolsonaro precisa ficar em pé e, para vencê-las, não pode disputar com Lula. São duas missões com o mesmo objetivo.
Se Bolsonaro não sofrer impeachment ainda este ano, é porque os golpes ocultos estão em curso, disfarçados de arroubos autoritários. Não soa republicano apoiar um governo que acumula crimes comuns e de responsabilidade, que faz investidas contra a democracia usando as instituições democráticas, que não tem projetos nem programas sociais, não entrega reformas e, para piorar, tem a popularidade derretida a cada minuto.
Se ‘ninguém’ apoia o governo, quais são os pilares, além das retóricas armamentista e miliciana, que permitem um governo que tem como projeto o desmonte? Quem se beneficia dos ares de instabilidade e caos?
STF, Congresso e imprensa também se beneficiam do ar de golpismo
Enquanto parecem repudiar com veemência o governo Bolsonaro, outra pauta une estas instituições: a manutenção da instabilidade. Sem ela, fica mais difícil ‘puxar o tapete’ (mais uma vez) do principal oponente ao bolsonarismo dentro do campo democrático: o ex-presidente Lula.
A maior parte da imprensa segue naturalizando a postura criminosa de Moro com Lula na operação Lava Jato. Em tempos obscuros, mesmo quem parece ser a voz da razão assiste a audiência bater recordes.
O Supremo Tribunal Federal lavou as mãos no caso Lula, jogando os casos de volta à primeira instância. Com isso, o STF recupera um pouco da credibilidade perdida junto a uma parte considerável da sociedade nos últimos anos. Afinal, quem defende a democracia evitou atacar a suprema corte para não se misturar ao bolsonarismo, embora não faltassem motivos para críticá-la.
Já o Congresso se aproveita do vazio de poder deixado pelos escândalos da família presidencial. Apesar da barulheira bolsonarista, escândalos enfraquecem qualquer governo, sem exceção. Na prática, Bolsonaro abandonou Daniel Silveira, e não parece que vá se compadecer com Bia Kicis – a parlamentar extremista que preside a principal comissão do Congresso, a CCJ. As ‘baixas’ de militantes próximos, como Sara Giromini, Allan dos Santos e Oswaldo Eustáquio, alimentam nas bases a ilusão de que foram vítimas de censura, de que a ditadura do comunismo esquerdista os privou da liberdade de expressão.
Alguns parlamentares dão entrevistas dia e noite, fazem lives, mantêm a militância ativa nas redes sociais, mesmo que ‘ativa’ não seja necessariamente ‘coesa’. O presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, tem estado frequentemente ao vivo na CNN ou na GloboNews tranquilizando a nação de que não haverá ruptura, ou tentando justificar erros na gestão da pandemia, ou simplesmente falando bastante e não dizendo nada. Tempo de tela, dizem os marqueteiros.
Engana-se quem acha que o Alto Comando do Exército está jogando o capitão ao mar. Ninguém vai pular do barco, menos ainda o próprio capitão que tem o timão (ou a caneta Bic) na mão.
É sensato ter em mente, neste momento, que os golpes no Brasil costumam ocorrer sorrateiramente, fora das agendas, com malas de dinheiro, com disparos em massa de fakenews, embora sigam todos os ritos judiciais, protocolos legislativos e entreguem narrativas de fácil digestão a um jornalismo que vive de likes.