Marcos Hermanson Pomar
Fontes ouvidas pelo Joio criticam metodologia e tacham pesquisa como ‘peça de propaganda’. Perdas, desigualdades de consumo e destinação da produção ficaram de fora da conta
A ideia de que o Brasil alimenta o mundo é muito cara ao agronegócio. Como argumento, é fortíssima, porque legitima a atuação de um setor acusado de destruir florestas, degradar o padrão de vida de populações tradicionais e gozar de privilégios tributários injustificáveis.
O próprio presidente da República afirmou, em julho deste ano, que o “Brasil garante a segurança alimentar de 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo”. Esse número mágico aparece também em eventos, na boca de parlamentares e entre pesquisadores. Mas, apesar de repetido mil vezes, não encontra respaldo em fontes científicas.
Ou não encontrava? Em março deste ano, a Embrapa publicou o estudo com título auto-explicativo “O Agro Brasileiro Alimenta 800 Milhões de Pessoas”, assinado pelos pesquisadores Elisio Contini e Adalberto Aragão.
Ao longo de suas nove páginas, o trabalho calcula a contribuição da produção brasileira de grãos e carnes bovinas em relação à produção mundial destas commodities e, a partir dos dados, estima que o Brasil seria responsável por alimentar cerca de um décimo da população do planeta.
Na prática, a metodologia da pesquisa consiste em uma “regra de três” básica, onde as constantes são: população mundial, produção brasileira e produção global de grãos, enquanto o xis da questão é a “população alimentada pelo Brasil”.
Como o Brasil é responsável por cerca de 10% da produção mundial de trigo, soja, milho, cevada, arroz e carne bovina, os pesquisadores concluem que atualmente estaríamos alimentando 10% da população mundial, ou 800 milhões de pessoas – incluída a população nacional.
O trabalho ganhou repercussão em veículos como Valor Econômico, Correio Braziliense e Agência Reuters de Notícias, além de uma versão reduzida em língua inglesa.
Entretanto, fontes ouvidas pelo Joio fazem críticas à pesquisa, apontando inconsistências metodológicas, como o fato de que os autores não levaram em consideração a destinação dos grãos, os desperdícios na cadeia produtiva, desigualdades de consumo e dados sobre insegurança alimentar.
“Confundiram alimento com ração, pressupondo que a população mundial poderia ser alimentada com soja e milho”, sintetiza o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo. “Ninguém come isso. A alimentação humana é muito mais diversificada e não está incluída nessa conta.”
Fome
Walter Belik, professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e diretor-geral adjunto do Instituto Fome Zero, critica o fato de o trabalho considerar, logo em sua primeira linha, que toda a população brasileira está “alimentada adequadamente” pelo Agro.
“O último dado do Inquérito Vigisan mostra que 56% da população brasileira está em estado de insegurança alimentar”, afirma ele, em referência ao trabalho desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. “Não dá pra dizer que você está alimentando o mundo se você mal alimenta a população do seu país.”
Belik também comenta a ênfase dada ao aspecto meramente produtivo, deixando em segundo plano outros fatores importantes: “A disponibilidade do alimento é um dos problemas”, argumenta. “Mas há um outro fator, mais importante até, que é o acesso à alimentação.”
“Colocar no mercado o equivalente a alimentação para 800 milhões é diferente de garantir que esse mesmo número de pessoas esteja consumindo aquela comida”, argumenta o professor.
Os dados mais recentes da FAO, publicados em abril de 2021, apontam que cerca de 927 milhões de pessoas se encontram em estado de insegurança alimentar grave no planeta. A cifra não foi levada em consideração no estudo.
Desigualdade
Logo em sua página dois, o trabalho da Embrapa coloca como pressuposto a “hipótese forte de que o consumo seria uniforme no mundo”. Ou seja, considera que não há desigualdade na aquisição de comida. Nem entre diferentes países, nem entre as populações mais ricas e mais pobres de cada país.
Dados do ComexStat do Ministério da Economia mostram que a China responde por 73% das exportações brasileiras de soja, produto que representa mais da metade da produção agrária brasileira considerada no trabalho, com 135 milhões de toneladas.
Ao mesmo tempo, a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE mostra que as famílias brasileiras com rendimento superior a R$ 15 mil mensais comem o dobro de carne das famílias com rendimento mensal igual ou inferior a R$ 1,9 mil. São quase 15 quilos a mais consumidos por ano, para cada membro do núcleo familiar.
Ração de bicho
O agrônomo Leonardo Melgarejo, membro da Sociedade Brasileira de Agroecologia, lembrou que o estudo utiliza um número limitado de culturas agrícolas como parâmetro.
“Ao dizer que o Agro brasileiro alimenta 800 milhões de pessoas, levando em conta apenas a produção de soja, milho, trigo, cevada e arroz, ele supõe que essas pessoas comem apenas esses produtos”, argumenta.
Segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Milho (Abimilho), das 88 milhões de toneladas de milho produzidas no Brasil durante a safra 2020/2021, apenas 2 milhões foram diretamente para o consumo humano, ao passo que 55 milhões viraram ração animal e 22 milhões foram exportadas.
Dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) mostram que a produção brasileira de soja no ano passado foi de 135 milhões de toneladas. De acordo o Sindicato Nacional da Indústria de Alimentação Animal (Sindirações) e o ComexStat, 17 milhões viraram ração, enquanto outras 82 milhões de toneladas foram exportadas.
Pesquisador da Embrapa defende o trabalho
Elísio Contini está há quarenta anos na Embrapa. Atualmente chefe da Secretaria de Inteligência e Relações Estratégicas da empresa, ele também integra o Conselho Superior de Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e o Conselho Nutricional e Alimentício do Fórum Econômico Mundial, além de ser professor convidado da Fundação Getúlio Vargas.
Em entrevista ao Joio, Contini defende o estudo publicado em março: “Eu acho que, dentro da metodologia que adotamos, esses são os dados. E dados são fatos.”
Para o pesquisador, a pandemia e a diminuição no rendimento das famílias explicam a aparente contradição entre aumento da fome e a safra recorde do Brasil no ano passado: “O problema é renda. A pandemia trouxe um fato novo, que é o desemprego. Desestruturou a economia do país.”
Como remédio, ele defende a adoção de políticas públicas de distribuição de renda e ações de caridade da sociedade civil: “Estamos precisando de pessoas caridosas e do governo também ajudando, como tem ajudado, com Bolsa Família e Auxílio Emergencial”.
Questionado sobre perdas e desperdícios na cadeia de valor, o cientista gaúcho explica que, por não se restringirem ao Brasil, entendeu que não haveria necessidade de computá-las no estudo: “Tanto tem perdas aqui como perdas no mundo. Então, perdas por perdas, não quantificamos.”
Eu acho que, dentro da metodologia que adotamos, esses são os dados. E dados são fatos.
Elísio Contini em entrevista ao Joio
Não existe ‘nós alimentamos eles’, diz autor estadunidense
Timothy Wise é autor do livro Eating Tomorrow, que trata da disputa entre sistemas alimentares baseados no agronegócio e na agricultura familiar.
Ele diz que é arrogante a ideia de que o agronegócio brasileiro ou mesmo o agribusiness americano podem alimentar o mundo: “Não existe um mundo aí fora esperando para ser alimentado. Não existe ‘nós alimentamos eles’”.
“O que existe são cerca de um bilhão de pessoas que não têm renda ou recursos produtivos para se alimentar adequadamente”, diz
“Não é errado constatar que o Brasil produz vastas quantidades de grãos e que esses grãos se transformam em carne, ao virarem rações para animais de interesse comercial”, explica. “O problema é achar que os pobres do mundo estão se alimentando desta carne.”
“A maior parte do alimento consumido na África é produzido pelos próprios africanos”, argumenta. “Geralmente por pequenos agricultores, que cultivam de modo mais sustentável e produzem uma diversidade de alimentos muito maior.”
Para o professor, “o estudo não faz as perguntas corretas, não usa os dados apropriados e sugere que precisamos aumentar a produção de commodities”. “E essa é a conclusão errada. Nós precisamos de muito menos desse tipo de produção”, conclui.
Países com menor população produzem mais alimentos tradicionais do que o Brasil, que escolheu priorizar as commodities.
Coro dos contentes
O estudo da Embrapa vem para reforçar um raciocínio muito repetido entre atores políticos e representantes do Agro: o de que o Brasil tem o destino-manifesto de alimentar o planeta, mantendo seu papel de economia primária baseada na exportação de commodities.
Mostramos na reportagem “O Agro é Tech”, lançada em março deste ano, que representantes do chamado Agro 4.0 vêm falando na necessidade de incorporar tecnologias digitais à produção agrícola nacional de forma que, em 2050, o Brasil possa alimentar 40% da população mundial.
Outro exemplo da aparição desta ideia se deu no dia 28 de julho, quando a Secretaria Especial de Comunicação do Governo Federal (Secom) publicou um card com os dizeres “Dia do Agricultor: Alimentando o Brasil e o Mundo”.
A postagem, que depois foi apagada, também trazia a imagem de um suposto agricultor armado com um rifle em meio a uma plantação de soja.
Para o professor Belik, a propagação desta ideia de missão global serve para desviar o foco das críticas pela devastação ambiental empreendida em prol da agropecuária no país, justificando seus impactos ao meio-ambiente.
“É um fundo basicamente político”, afirma. “É como se eles dissessem ‘Olha, a gente tá devastando a floresta, aumentando as queimadas, mas isso tem um motivo nobre, já que alimentamos 800 milhões de pessoas’”.
O professor também classifica como perigosas as tentativas de dar “capa científica” a tal discurso: “Eu diria que do ponto de vista ético é muito irresponsável.”
Elisio Contini, da Embrapa, prevê que uma atualização do estudo deve ser lançada no ano que vem.