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Pablo Marçal: como lidar com um vigarista digital?

“O sistema” não sabe o que fazer com Pablo Marçal; isso demonstra que não aprendemos nada nos últimos anos

Arte: Vida Indigital
Coluna de Natalia Viana para a Agência Pública

Não se fala em outra coisa. Em pouco mais de três semanas, Pablo Marçal conseguiu criar caos na disputa eleitoral em São Paulo, crescer 7 pontos percentuais nas pesquisas, brigar com Bolsonaro, tirar Tabata Amaral da posição de boa moça para o ataque, afastar os líderes na disputa dos debates – e agora até os canais de TV começam a pensar se deve mesmo haver novos debates, depois do esvaziado programa da revista Veja.

Ao mesmo tempo, fez crescer seu nome, ou melhor, seu “reconhecimento de marca”, ampliou o número de pessoas dispostas a espalhar sua mensagem e participar de seu gigantesco esquema de views. Com suas redes suspensas por decisão da Justiça, terá se tornado talvez o candidato mais popular. Desde que foi anunciada a decisão do juiz Antonio Maria Patino Zorz de suspender todas as suas contas até o fim da campanha, Marçal trocou sua foto de perfil por uma imagem dramática, em preto e branco, com uma mordaça sobre a boca, onde está escrito “sistema”. Desde então, ele é o nome mais procurado no Google, superando de lavada Lula e Bolsonaro. Em apenas um dia, a conta reserva que ele criou no Instagram para quando a principal for bloqueada já tem mais de 2,7 milhões de seguidores (a oficial tem 14 milhões).

De fato. O “sistema” – as instituições que trabalham para salvaguardar as regras eleitorais e a democracia – não sabe o que fazer com Pablo Marçal. E isso só demonstra que não aprendemos nada nos últimos anos.

Vejamos. Pablo Marçal é um vigarista, daqueles de longa ficha corrida. Foi condenado em 2010 por participar de uma quadrilha que desviou dinheiro de bancos como a Caixa e o Banco do Brasil, ajudando a gangue a obter emails de clientes, que então recebiam emails acusando-os de inadimplência e tinham seus dados roubados, assim como o dinheiro. Em 2022, liderou uma expedição “motivacional” a uma área montanhosa de São Paulo que teve de ser resgatada pelos bombeiros. Seu sócio nos cursos, Renato Cariani, é investigado por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro; uma de suas empresas teria emitido notas fraudulentas para desviar produtos químicos para o refino de cocaína e de crack. E, como deixou claro Tabata Amaral no seu último vídeo de campanha, há indícios preocupantes de proximidade do coach com o PCC. Não seria nenhuma surpresa que todo o esquema montado para essas eleições fosse uma grande máquina de lavar dinheiro.

Erra quem acha que Marçal está “roubando o bolsonarismo de Bolsonaro”, ou que estamos vivendo mais um repeat da estratégia eleitoral da extrema direita. Pablo Marçal é um passo além na manipulação do debate público para ganho próprio. Ele coroa a era do faroeste digital, que tem seu maior expoente no dono do Twitter, Elon Musk. Marçal não adota a estratégia digital para projetar uma mensagem ou ideia, ele é o produto. Sua campanha é tão oca quanto o sonho de milhões de adolescentes que querem virar influenciadores quando crescerem. Fala-se dele porque se fala dele.

E, por ser uma pessoa tão vigarista, ele está unicamente posicionado para abraçar essa nova era do faroeste. Usando o jargão de outro grande vigarista de estimação dos brasileiros, recentemente falecido, Marçal “topa tudo por dinheiro”, e não tem vergonha de assumir.

Sua base de apoio online é formada por milhares de jovens e adolescentes de classe baixa que estão em busca de dinheiro fácil diante de uma realidade que é cada vez mais brutal, em que o mercado de trabalho está derretendo e virar entregador de moto é a mais provável promessa.

Funciona assim a fábrica sweatshops de Pablo Marçal. Pra quem não sabe, ele adotou a estratégia de crescimento digital de Andrew Tate, um americano que ganhou fama na “manosfera” masculinista e hoje está preso na Romênia depois de ser investigado por estupro e tráfico de mulheres.

Funciona assim a estratégia: misturando gamificação com promessa de dinheiro fácil, Marçal alicia jovens e adolescentes para criarem contas “do zero” que funcionam apenas para promover a sua marca (o seu nome). Através de um aplicativo, recebem vídeos do “criador” que depois eles têm que cortar, postar online, sempre marcando os perfis do coach. Com 112 mil membros, o Discord de Marçal funciona como funcionavam os grupos de WhatsApp e Telegram pro bolsonarismo: ali os usuários são orientados a postar diversos vídeos no Instagram, YouTube e TikTok. Os vídeos mais assistidos recebem uma compensação financeira, e o próprio Marçal garante que os “garotos” ganham até mil reais por mês.

“O que que é fazer corte? É assistir um pedaço de um vídeo, pegar uma mensagem, o corte pode ter 15 segundos, 30, 45; quem tiver mais visualizações eu pago em dinheiro. Então toda semana tem a medição disso. Então tem garotos que tão ganhando R$ 400, R$ 600, mil reais fazendo isso”, explicou.

Foi com essa estratégia que, investindo cerca de R$ 7 milhões para sua massa de trabalhadores precarizados (muitos menores de idade), Marçal conseguiu o recorde de uma campanha digital no Brasil, arrecadou R$ 100 milhões vendendo cursos em nove semanas. Seus “produtos” são tão vazios como ele mesmo: Marçal vende cursos sobre como ganhar dinheiro, como ser um vencedor, como manter-se focado. É assim a roda: Marçal vende porque Marçal vende. E faz o que vende.

Para melhor viralizar, ele próprio assumiu que mudou sua postura nas redes. “Tem 4 mil pessoas que estão em um campeonato de corte, e eu pago um dinheiro até relevante para esse pessoal por visualizações. Comecei a pagar as primeiras competições, só que só tinha vídeo bonzinho, cara. Bonitinho, não viraliza. Eu estava aparecendo em tudo, só que com pouco comentário e pouca curtida. As visualizações polêmicas são muito maiores. Tem vídeo com 40 mil comentários, 40 milhões de visualizações. Aí eu chamei meu time e falei: “Cara, é isso aqui que eu tenho que pagar”, explicou em uma entrevista. “Às vezes eu nem queria falar aquele tema, mas eu falo, vou falar só pro corte pegar”, disse em outra ocasião.

Agora, na eleição, a fórmula se repete, com um exército de mais de 100 mil “garotos” acionados pelo Discord fazendo cortes dos vídeos de Marçal com a hashtag #prefeitomarcal e sonhando em ganhar alguns trocados. Nesse sentido, os seguidores de Marçal são menos ideológicos e fiéis que os bolsonaristas: eles querem, no fundo, apenas participar da abundância financeira que o líder projeta. Marçal capitaliza, assim, um sentimento que é muito cooptado pelas igrejas evangélicas – aliás, coalhadas de vigaristas, como sabemos – e expresso pela teologia da prosperidade.

A pirâmide de Marçal, entretanto, vale-se de algo que eu cansei de repetir aqui e que é uma tremenda sacada, o fato de que as redes sociais são sócias da desinformação e, neste caso, de vigaristas como ele. Uma de suas “cortadoras”, responsável pelo perfil Billion Marçal, explicou como outros “cooptados” poderiam passar a ganhar dinheiro não só com os concursos de cortes, mas também das próprias plataformas. “São mais de vinte estratégias para você fazer dinheiro com os vídeos do Pablo Marçal, tem como você fazer dinheiro no Youtube, no Tik Tok, que são plataformas que pagam em dólar pela quantidade de visualização, que tem os seus vídeos, e como você vai aprender a viralizar um vídeo fica mais rápido dessas plataformas começarem a te pagar”, escreveu. Terminando com um mantra quase-religioso-mindful-pós-futurista:

“Pablo Marçal todos os dias nos ensina a prosperar”, #prosperidade, #Riqueza, #Mind, #Pablo Marçal.

Tudo isso funciona totalmente fora das regras da propaganda eleitoral, claro, e com fortes indícios de abuso de poder econômico nos termos da lei eleitoral, conforme apontou a petição da candidata Tabata Amaral ao TRE. E, por isso mesmo, fez muito bem o juiz Antonio Maria Patino Zorz ao suspender as contas de Marçal, mesmo que isso o torne mais popular ainda: afinal, o papel da Justiça Eleitoral é fazer cumprir a lei.

Para Marçal, sabemos, é tudo lucro. Com a decisão, sua marca só cresceu, e as menções positivas superaram, agora, as negativas. Ganhe ou perca no voto, Marçal sai ganhando, porque cresce a sua marca, e depois será ainda mais fácil fazer “remarketing” e vender seus cursos sobre como vencer na vida, como bem resumiu o marqueteiro digital Ícaro de Carvalho na sua conta no Instagram: “Ele entendeu que a cada dois anos ele tem dinheiro grátis esperando por ele a cada eleição”.

A encruzilhada, no final, fica mais para as campanhas de Boulos e Nunes, que acabam ficando reféns do novo fenômeno político, que consegue, com sua estratégia, pautar diariamente o debate público, empobrecê-lo a seu favor.

Já para Jair Bolsonaro, não acredito que Marçal consiga romper de vez com o padrinho e “roubar” o bolsonarismo dele: existe, afinal, algo autenticamente brasileiro no bolsonarismo. Na campanha de Marçal não. Nem acredito tanto, inclusive, na sua professada fé cristã. Se estivéssemos em um momento histórico em que fosse popular ser comunista, garanto, ali estaria Pablo Marçal com bonezinho de Che Guevara.

O marketing oco de Marçal pode até chegar longe em uma eleição – quiçá ganhá-la –, mas não constrói uma carreira política. E, sendo uma figura com um passado tão maculado, não será muito difícil que se encontre um elo frágil para que o assunto vire caso de polícia. Em especial, esse elo pode estar na origem do dinheiro que Marçal já investiu nesta eleição para pagar seu exército de trabalho infantil. O maior problema, na verdade, é que o risco Pablo Marçal já aconteceu: ficou claro que, no nosso sistema político, um aproveitador com conhecimento de marketing digital e nenhum escrúpulo consegue alugar uma sigla política e se tornar um fenômeno de votos do dia para a noite. E que há políticos, partidos e pessoas a fim de se aliarem a ele e ganhar unzinho em cima. Temo que veremos, assim, uma pablomarçalização do nosso jogo eleitoral daqui para a frente.

Fundada em 2011 por repórteres mulheres, a Pública é a primeira agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos do Brasil. Todas as nossas reportagens são feitas com base na rigorosa apuração dos fatos e têm como princípio a defesa intransigente dos direitos humanos.
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