+ de 400 livros & discos

10% Off

no PIX

Carta aos Estados Unidos da América

Em setembro, o astrofísico Neil deGrasse Tyson publicou um texto chamado "Carta ao Brasil". O ministro astronauta do Brasil, Marcos Pontes, respondeu. O que restou foi um diálogo superficial, com temas relevantes deixados de lado. Veja como Vida Indigital responderia.

Antes de tudo, eu preciso fazer uma contextualização rápida. Tenho profunda admiração por Neil deGrasse Tyson e o trabalho dele. Quando li “Letter to Brazil” senti que havia uma infinidade de possíveis cartas-respostas, uma espécie de fonte inesgotável de assuntos interligados. “Carta aos Estados Unidos da América” foi um título praticamente automático e instantâneo.

Reply

Notas de repúdio, petições, e até mesmo o envio de cartas: os formatos válidos na arena da performance pública não são ilimitados. Se tudo é narrativa, a criatividade precisa mandar. Nesse mar de discursos bem intencionados, o que fica resolvido? Quais abismos a serem superados na tentativa caótica de construção de pontes para um diálogo franco entre as comunidades científicas do Brasil e dos Estados Unidos?

Breve histórico

A carta de Tyson foi redigida em setembro, mas foi notada no Brasil em outubro, após um post no perfil de Tyson no Twitter. Quem noticiou a carta por aqui falou em “um verdadeiro incentivo à ciência brasileira“. Na ocasião, o ministro da Ciência e Tecnologia, o ex-astronauta Marcos Pontes, gravou um vídeo exibindo um inglês correto para responder ao post no Twitter:

Gravar uma vídeo-resposta, como o ministro Marcos Pontes fez, soaria pedante. Ainda assim pude sentir que a carta ao Brasil de Tyson é direcionada também a mim: na verdade, a qualquer pessoa que se importe com o desenvolvimento científico, tecnológico e acadêmico no Brasil. Então optei pelo formato “carta responde carta”. Não sou astrofísico, nem astronauta, nem ministro: sou de humanas, e escrever é das poucas coisas que faço minimamente bem.

Esta tarefa que decidi realizar demandou um grande esforço para não soar ou parecer petulante. Afinal, e antes de tudo: quem sou eu perante tal cânone? É provável que eu tenha fracassado pelo simples fato de ter levado essa ideia adiante. Além disso, a intenção da minha resposta não era dizer que ele está errado e rebatê-lo: ao contrário, acredito que podemos sofisticar a forma como nos ‘enxergamos’ ou nos ‘percebemos’ uns aos outros, brasileiros e estadunidenses, e que há temas encobertos e não contemplados na carta e que gostaríamos de abordar.

É em princípio assustadora a ideia de promover um diálogo, mesmo quando a intenção é boa, com um norte-americano em posição de destaque – o maior Astrofísico do universo, no caso. Ainda mais para criticar – mesmo que de uma maneira esforçadamente delicada – o apelo a estereótipos nacionais ultrapassados para enaltecer o Brasil aos olhos do que deGrasse supõe do cidadão estadunidense mediano.

A carta deixa clara a defasagem histórica entre o que o cidadão estadunidense médio pensa do Brasil – imaginado por Tyson -, e o que o cidadão brasileiro médio – imaginado por mim – pensa sobre os Estados Unidos. A minha resposta é sobre o quanto nós brasileiros conhecemos os Estados Unidos mais do que eles imaginam, e é também sobre o quanto eles desconhecem a nossa mitológica Pindorama.

Neil deGrasse: Querido Brazil,

Vida Indigital: Queridos Estados Unidos da America,

Neil deGrasse: Das minhas muitas viagens à América do Sul, nunca tive a oportunidade de visitar você. A maioria delas teve como destino a cordilheira dos Andes, com o objetivo de observar o magnífico céu do hemisfério sul através de telescópios de alta tecnologia de um consórcio internacional. Mas, mesmo assim, tenho pensado em você com bastante frequência.

Vida Indigital: Apesar de ‘você’ não ter vindo pessoalmente até aqui, é uma grande satisfação receber uma carta sua. Respeitamos o seu trabalho assim como tudo do seu País. Sim. Admiramos demais os Estados Unidos da América e não ligamos quando alguém resolve puxar papo com boas intenções – na verdade, sempre fomos convidativos. Na verdade mais profunda, ficamos intrigados com a quantidade de cartas que temos recebido ultimamente. Estamos perdidos! Para você ver como andam as coisas, fomos despejados do consórcio internacional responsável pelas suas visitas aos Andes. Engraçado você não mencionar isso na sua carta. São tantos os infortúnios recentes no campo da pesquisa científica que não caberiam em mil cartas. Venha nos visitar quando a pandemia terminar. Nosso ministro pode se encarregar do envio de um convite timbrado.

Neil deGrasse: Como nativo dos Estados Unidos da América, sei em que costumamos pensar quando se trata de você. Não seguindo uma ordem específica, você possui a maior e mais importante floresta tropical do mundo. Você abriga o maior rio do mundo, que, a cada minuto que passa, escoa para o oceano Atlântico um volume de água que daria para encher um estádio de futebol. E, sim, nós sabíamos da existência de seu rio e de sua floresta tropical muito antes de a Amazon.com pegar o nome emprestado.

Vida Indigital: Como nativo do Brasil, não posso dizer exatamente o que vem à cabeça quando o assunto é os Estados Unidos. Ou America, como dizem? Curioso você não falar no empréstimo do nome do continente inteiro. Bom, aqui uns podem evocar “disney” ou “hollywood” ou devolver com outra pergunta: “é lá nos esteites?”. Eu diria que vocês possuem um ‘algo mais‘, um ‘tchan‘, que se encaixa perfeitamente ao ideal aspiracional de boa parte da chamada classe média alta brasileira: uma exuberância, um dourado reluzente, uma riqueza ostensiva. Em termos gerais, temos em comum a adoração ao dinheiro, com a diferença de não o termos em suficiente quantia para evitar que agentes internos e externos se apropriem de riquezas naturais, tão cobiçadas há séculos por ex-potências coloniais e, agora mais recentemente, por gigantes capitalistas ou socialistas de mercado, não importa o regime. Idolatramos o que é desenhado na Califórnia e fabricado não importa onde. Veja bem, não é que eu concordo com isso. Aqui, ser como vocês é status. Ficamos lisonjeados quando alguém pega emprestado nosso maior rio para dar o nome a um site. Nosso maior site de compras pegou um nome daí emprestado: Americanas.com. Agora olha que curioso: Brazilians.com é um domínio que está registrado aí no seu País.

Neil deGrasse: Quer mais? Não há quem não goste de castanha-do-brasil. Na verdade, nos EUA, nós precisamos pagar pelo pacote “premium” para que elas venham incluídas em nossos mix de castanhas. E mesmo aqueles de nós que quase não acompanham futebol sabem da existência de seus times famosos, ficando na maior expectativa de ver você na final da Copa do Mundo a cada quatro anos. Também sabemos das suas praias deslumbrantes pelas músicas que as cantam—a “Garota de Ipanema” sendo uma delas. Sabemos de suas festas populares, principalmente o Carnaval, e tentamos imitar a intensidade e a alegria dessas celebrações—com dança e música—aqui no nosso hemisfério. Sabemos do seu café. E eu, particularmente, amo a sua bandeira. Há um pedaço do céu noturno estampado nela; mais de duas dezenas de estrelas retraçam constelações autênticas, incluindo o Cruzeiro do Sul.

Vida Indigital: Queremos, é claro! E por falar em castanha-do-brasil – a nossa especiaria fit amazônica, junto do açaí – aqui ela também não é para qualquer um. A demanda por castanha-do-brasil no resto do mundo eleva os preços internacionais, e como consequencia o preço dessa especiaria em um supermercado brasileiro é um enorme milagre globalizado. Por aqui, NBA, liga de hóckey, de baseball e de futebol americano geralmente interessam às pessoas que têm TV a cabo – em geral as mesmas que podem comprar as castanhas-do-brasil – e alguns adolescentes de escolas particulares. Não posso assegurar que conhecemos as suas belezas naturais além do Havaí e de outras que vimos no Discovery Home&Health, que são numerosas. Tampouco posso afirmar que todos tenham assistido aos maiores clássicos de Hollywood. Mas dá para observar, pelo estilo do nosso comércio local, que cobiçamos ser vocês, aquelas lojas da 5ª avenida, a arquitetura e os nomes dos nossos condomínios gritam que aqui também pode ser Manhattan ou Miami. A Barra da Tijuca você vai adorar. Não é a mesma coisa que Miami, lógico, mas desejamos no fundo ser vocês por inteiro. E alguns de nós até conseguem. Um pessoal até tem desfilado com a sua bandeira em protestos pedindo o fechamento do Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Por que será que fazem essa relação da bandeira dos Estados Unidos com intervenção militar? Talvez você consiga nos esclarecer, por aqui não fazemos a menor ideia. Provavelmente você encontre informações sobre este assunto nas políticas externas para a América Latina, por exemplo. É nessa ‘pasta’ que costumamos ser tratados pelo Departamento de Estado. Dá uma olhada nisso pra gente, Neil?

Neil deGrasse: Então, se você perguntasse a qualquer um de nós nos EUA o que vem à nossa cabeça quando seu nome é mencionado, normalmente selecionaríamos algo a partir dessa lista.

Vida Indigital: Então, se você perguntasse a qualquer um de nós no Brasil o que vem à nossa cabeça quando o seu País é mencionado, a lista imaginária de coisas a serem lembradas é bem maior. Alguém pode lembrar de guerras, extradições ou de complôs para enfraquecer democracias. Ou de Trump. Talvez nem todos nós pensamos assim, alguns podem lembrar do iPhone, do Whatsapp, da Netflix ou da NASA. Morgan Freeman ou Britney Spears ou Jeff Bezos: tudo depende. Somos numerosos e heterogêneos. Impossível prever, difícil arriscar um palpite. Na dúvida, acreditamos que fazemos parte de algo maior, a América. Deixa eu explicar melhor: nós somos vocês. E faz todo o sentido: o mundo é livre do comunismo graças a vocês, e vocês compartilharam todo o capital cultural com a gente, é tudo nosso. O dia em que vamos nos considerar Nações-Irmãs se aproxima. Inclusive alguns de nós puderam sonhar acordados que este dia finalmente tinha chegado com Bolsonaro e Trump.

Neil deGrasse: Você sabe do que nós não nos damos conta? Metade das vezes que embarcamos em voos domésticos, da American Airlines ou de outras companhias aéreas, viajamos num avião da Embraer. Tudo bem, o folheto com instruções de segurança traz impresso nele o nome Embraer. Nós podemos até achar Embraer escrito em letras miúdas em algum lugar da fuselagem. Mas quase nenhum de nós sabe que a aeronave é projetada e fabricada no Brasil. Você poderia alardear “Tecnologia Brasileira,” mas não o faz. Por que não? A Alemanha não hesita em se gabar da dela. Nada mais justo, claro. Todo mundo conhece a qualidade dos produtos fabricados na Alemanha, que, por sua vez, permeiam sua economia aeroespacial, a terceira maior do mundo.

Vida Indigital: É tão legal você tocar neste assunto dos aviões. Por aqui, a Boing também é muito popular. Não chega a ser metade do mercado, até porque os franceses da Airbus não deixariam de disputar nosso mercado aéreo em expansão até pouco tempo atrás. Lamentamos que a Boing não tenha conseguido honrar a compra da Embraer – vocês certamente cuidariam melhor dela do que nós. Pelo menos é o que boa parte das pessoas pensa por aqui. E vemos escrito “Made in Brazil” não só nos aviões mas em produtos variados, inclusive quando vamos à Buenos Aires ou aos Andes, que o senhor conhece bem, e os supermercados de lá vendem papel higiênico e lâmpadas “Made in Brazil” que nos deixam orgulhosos da nossa influência industrial e comercial na região. Não temos ainda algo perto de Designed in California, Made in China, mas design é secundário e fabricamos de tudo um pouco com o design dos outros. Ah, somos uma cópia de vocês, tirando o fato de poucas das nossas universidades estarem nas listas top do mundo nem termos uma rede de bilionários filantropos da ciência. A nossa cooperação BR-USA vai de vento em popa: vocês até já mandaram um pessoal para Alcântara, sem precisar nos contar o que fazem por lá. Tem a ver com satélites e foguetes, dizem. Teria algo a ver também com astrofísica?

Neil deGrasse: Mas, espere. Um dos grandes pioneiros nos primórdios da aviação era brasileiro. Engenheiro brilhante e inventivo, altamente condecorado, Alberto Santos-Dumont liderou a transição mundial do transporte aéreo mais leve que o ar para o mais pesado que o ar. O valor de uma semente cultural como essa, plantada no nascimento de uma indústria, é incalculável. Um século depois, você se tornou líder em tecnologias de biocombustíveis—um passo fundamental em direção a uma economia verde onde nossa harmonia com a natureza vai determinar se iremos prosperar, sobreviver ou nos extinguir. Você também possui uma ambiciosa agência espacial, além de ser a sexta maior indústria aeroespacial do mundo. Na América Latina, você também é líder em Tecnologia da Informação. E num país famoso por sua agricultura, quase um terço de sua economia se apoia num setor produtivo impregnado de tecnologia.

Vida Indigital: Engraçado você falar sobre Santos Dumond sem mencionar o apagamento histórico. Por aqui, aprendemos que Santos Dumond é sim o pai da aviação. Desde os primeiros anos de escola lembro de nos orgulharmos de Pelé, de Machado de Assis e de Santos Dumond, mais ou menos nesta ordem. Ou ao menos neste patamar de grandeza. Personalidades indígenas raramente viram heróis nacionais, como deveriam. Nossa agricultura e pecuária ainda estão entre as causas do desmatamento na Amazônia e outros biomas. Nossa economia verde voltou a ser ficção, sem governo, e nossos povos amazônicos e indígenas ameaçados por poceiros, garimpeiros e desmatadores irregulares, além da covid-19. Nosso Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o INPE, nem certificado digital possui no site – site ‘não seguro’. Outras mil cartas para falar sobre como nossos países poderiam cooperar nas questões agrícola, ambiental, aeroviária ou tecnológica. Nossa moeda, o Real, teve a maior desvalorização cambial em relação ao dólar no mundo este ano. Dear America, enquanto vocês ganham fama e mercado pela Tecnologia da Informação, nós somos uma filial em versão beta.

Neil deGrasse: Então talvez seja a hora de o mundo saber mais a respeito disso. Talvez seja a hora de os brasileiros saberem mais sobre isso. Talvez esteja mais do que na hora de você exibir produtos que declarem: “Fabricado no Brasil.”

Acelerador de partículas Sirius, em Campinas, SP

Vida Indigital: Quem sabe faz a hora, Neil. Há pelo menos dois séculos, a ideia de que somos um País do futuro circula entre nós. Você deu uma olhada para ver se tem Açaí no supermercado perto da sua casa? Você tomou suco de laranja hoje? Abastece o carro com etanol? Você usa Havaianas? O que você anda bebendo? Certamente não é um dos vinhos da pujante indústria vinícola brasileira. Na nossa música não vai uma plaquinha “Made in Brazil”… mas talvez você já tenha ouvido falar de Ivete, Caetano ou Anitta. A gente até que é bem exibido aqui viu. Também temos alguns ótimos filmes. Vamos conversar mais sobre isso. No ramo científico, que é o seu ramo, temos um grande acelerador de partículas, além de uma base de lançamento de foguetes, que inclusive passamos para vocês porque certamente vocês vão cuidar melhor daquilo lá do que nós. Mas uma coisa eu preciso enfatizar: é incrível o contraste entre a sua sensação de ver pouca coisa “Made in Brazil” aí, e a nossa sensação de respirar ares “Made in America” o tempo todo por aqui: Burger isso, Mc aquilo, Siri para lá, Alexa para cá, a lista é interminável. Queremos ser iguaizinhos a vocês. O tempo todo. E estamos conseguindo. Talvez até quem sabe podemos proibir o português e instituir o inglês como idioma oficial. Fizemos isso com o Tupi há 200 anos e deu certo. Somos vocês porque somos todos um único povo das américas.

Neil deGrasse: Seja o que mais for, ou não, verdade no mundo, as economias de crescimento do futuro—mesmo as que possam ser puramente agrícolas—vão girar em torno dos investimentos feitos hoje em ciência, tecnologia, engenharia e matemática. Numa democracia, esses investimentos fluem de um eleitorado letrado cientificamente, que elege líderes esclarecidos e que entendem o valor da educação, das pesquisas e das descobertas. Sem essas perspectivas, ainda estaríamos vivendo em cavernas, com alguns de nós resmungando: “Você não pode explorar o mundo exterior. Primeiro precisa resolver os problemas da nossa caverna”.

Vida Indigital: Precisamos ardentemente que nos diga para onde vão as economias agrícolas, como a nossa. É o nosso destino, sabemos. Quanto à nossa caverna, todos vivemos em uma. A astrofísica nos mostra que o presente é uma ilusão – o que os nossos olhos enxergam viajou na velocidade da luz – e que existe apenas passado e futuro. O presente seria então uma criação do nosso cérebro. Fora do nosso cérebro-caverna, terras e mais terras e a ciência. Os equipamentos agrícolas importados para uso em lavouras extensivas estão garantidos pelos nossos bancos, que hoje são poucos porém bastante robustos e lucrativos. Então por que fabricar algo que já nos habituamos a importar com financiamento facilitado. Lidamos exatamente dessa forma com todo o resto. Tudo no esquema. Não é um pouco assim aí também? Quanto à perspectiva de eleger líderes esclarecidos, vocês agarraram a chance de escolher um candidato que desestimula o charlatanismo, parabéns. Por aqui, as opções para 2022 variam de extremistas explícitos a demagogos de centro que se dizem esquerdistas. A esquerda engatinha juntando os próprios cacos, conforme planejado em 2015 ou antes com a ajuda do seu País.

Neil deGrasse: Para que ninguém se esqueça, o primeiro (e único) astronauta sul-americano foi um engenheiro aeronáutico brasileiro. E quando se deu o lançamento de sua missão? Em 2006, ano do centenário do primeiro avião bem-sucedido de Santos-Dumont. E o que ele levou para o espaço? Uma bandeira do Brasil e uma camisa da seleção brasileira de futebol.

Vida Indigital: Como esqueceríamos do nosso ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes! Somente alguém como ele, que conhece de perto o poderio da NASA, poderia impulsionar a nossa ciência. E levando a bandeira brasileira e a camisa da CBF na viagem espacial ele comprova isso. Casualmente, estes símbolos entraram para a História recente relacionados ao novo tradicionalismo de extrema-direita. Lastimável.

Neil deGrasse: Os países que mais passam por dificuldades no mundo tendem a ser aqueles com baixos níveis de instrução e com ausência de STEM3 em sua cultura. Você tem os recursos e o legado para liderar toda a América Latina, se não o mundo, no que um país do futuro deveria ser—no que um país do futuro deveria aspirar ser.

Vida Indigital: Pois é, a ideia do que o País quer ser foi sequestrada pela lente do discurso neotradicionalista. Com o nosso sistema de saúde, conseguiríamos vacinar 27 estados da federação de forma organizada. A União Européia vai vacinar 27 países e nós não temos um plano para 27 estados. Isso talvez mostre que é cedo demais para sonharmos com liderança mundial, como você sugere. Torce para a gente, claro, vamos quem sabe num futuro próximo encher as gôndolas do Walmart de quinquilharias Made in Brazil. Mas infelizmente não é o que o relatório da OCDE indica para a próxima década: nosso desemprego pode chegar a 16% em 2021, em conjunção com um ensino superior público sucateado ou interditado devido ao coronavírus, e uma indústria encolhida graças a uma crise global de insumos. Definitivamente, construir o País do Futuro que nos cobram tanto, e há tanto tempo, depende de muitos fatores.

Neil deGrasse: Se você abraçar e apoiar suas indústrias STEM—e o setor de tecnologia inteiro—então os sonhos dos alunos em toda a cadeia educacional não terão limites, conforme eles forem introduzidos num mundo em que foguetes são o que alimentam as ambições das pessoas que saem pela porta da caverna.

Vida Indigital: Caro, veja bem… tivemos um único astronauta. A administração atual do Estado brasileiro não tem políticas públicas para incentivar de forma coordenada as áreas-chave com inestimentos certeiros. Tudo bem sonhar em viajar de foguete, nada contra. Viajar no espaço, quem não quer. Mas a ideia de que a ciência é um palco mundial pode vir também de outras referências. Fica mais difícil direcionar a suposta saída do jovem cientista da caverna direto para o espaço. Cerca de 20% de nós pode arcar com esse sonho em uma escola particular. Do lado oposto, outros cerca de 20% não tem nem ao menos uma caverna adequada de onde possam sair. As ambições individuais formaram uma grande onda empreendedora que afoga as mídias digitais neste exato momento, e há bastante tempo. Há espaço para outros sonhos que não sejam foguetes, aplicativos ou átomos. Há espaço nas Ciências Humanas, que questionam entre outras coisas, o ímpeto pela corrida espacial. Do lado de fora das nossas cavernas pode não ter foguetes, Neil. Olhando daqui, a nossa janela para o futuro fora da caverna pode ter ficado para trás, e nem percebemos. A transformação profunda acontece agora, todos os dias e há muito tempo.

Neil deGrasse: Atenciosamente, Neil deGrasse Tyson – Estados Unidos da América

Vida Indigital: Saudações cordiais, Vida Indigital – República Federativa do Brasil

Pular para o conteúdo