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Um caso de tokenismo

Com o lema "O futuro só é se for para todos", o evento Americanas Summit 2021 levantou questões relevantes sobre meio ambiente e diversidade, mas caiu na armadilha do tokenismo.

Linn da Quebrada / Reprodução: Americanas Summit 2021
Publicado originalmente em 2021. O texto e o título foram alterados em 30/09/2023. Saiba mais sobre as alterações ao final do texto.

No último dia 15 de outubro, as Lojas Americanas S.A. promoveram o encontro anual dedicado a lojistas e parceiros em preparação para o pico de vendas de fim de ano. Este ano, o evento se chamou Americanas Summit e, quem assistiu, presenciou um caso de tokenismo.

A empresa é controlada pelo trio de homens mais ricos do Brasil e é uma das maiores varejistas do País.

De acordo com a divulgação do evento, “o Summit 21 conta com uma extensa programação online e gratuita dividida em três formatos: o Evento, uma live que reúne grandes nomes nacionais e internacionais; os Talks, com debates entre especialistas da americanas s.a. e convidados que transformaram seus negócios em cases de sucesso; e as Oficinas, aulas práticas facilitadas por parceiros de capacitação“.

O evento

A 1ª edição ocorreu em 2017, no hotel Unique, em São Paulo. Se chamava B2W Marketplace Summit e, em 2020, foi renomeado para B2W Summit. O Americanas Summit deste ano foi diferente de edições de anos anteriores não apenas no nome.

Desta vez, o foco do summit não estava 100% na Black Friday – que, desde 2012, se consolidou como a principal data do calendário do varejo online no Brasil e que drenou por vários anos todas as atenções por sua grandiosidade.

O foco total deste ano esteve na ênfase da importância da diversidade e do meio ambiente, tanto para as empresas, quanto para as pessoas.

A mestra de cerimônias foi a Ana Clara, e a palestra de abertura foi de Leandro Karnal, que não poderia ser resumida em uma única frase, mas se pudesse seria: “o que nos faz humanos, diferentes de outros animais, é a capacidade de ter esperança e, portanto, não podemos perdê-la jamais“.

Reprodução: Americanas Summit 2021 / YouTube

A alta direção da empresa, ao contrário de anos anteriores quando participava nos eventos físicos ou ao vivo, este ano optou pelo envio de discursos gravados.

A ordem em que os vídeos foram apresentados coincide com a hierarquia interna do conglomerado: o primeiro vídeo, logo no início, foi do atual presidente da Americanas SA e ex-presidente das Lojas Americanas, Miguel Gutierrez.

Ao longo da programação, apareceram nesta ordem: Anna Saicali, ex-CEO da B2W Digital e agora CEO da plataforma de inovação; Márcio Cruz, ex-diretor comercial da B2W Digital e agora CEO da plataforma digital; Thiago Barreira, também ex-diretor comercial e agora CEO da Ame Digital (único a participar ao vivo); e, por fim, Timotheo Barros, ex-diretor de vários departamentos e agora CEO do braço de lojas físicas.

O tokenismo está no ar

A intenção é das melhores: dar espaço e atender à demanda legítima por representatividade, escalando uma “indígena”, uma “lésbica”, uma “trans” para as palestras.

O que ficou visível é que de todos os funcionários e funcionárias da empresa que apareceram nas mesas e debates, nenhuma pessoa era negra ou trans. Direção: branca. Apresentadores: brancos. Funcionários: brancos.

Algumas pessoas na pequena plateia eram negras.

Ter ‘pessoas diversas’ e bem pagas falando sobre ‘diversidade’ talvez não seja exatamente o que as ‘pessoas diversas’ esperam como resultado das suas diferentes lutas e bandeiras.

E, no evento, o tema da diversidade não só ficou para o final, como também ficou claro que, apesar do debate proposto, a mudança precisa ocorrer agora, a começar por dentro da própria empresa dona da festa, que teve coragem de expor a própria contradição e que tem a chance de se ver como é: predominantemente branca e masculina.

Gadú & Pataxó

Reprodução: Americanas Summit / YouTube

A pauta ambiental surgiu representada pela palavra “sustentabilidade”, que, sozinha, gera debates e discussões se está ou não adequada, em um momento que já se sabe que “consumo consciente” ou “desenvolvimento sustentável” são termos falaciosos.

O assunto veio à tona logo no início da interessante conversa entre a ativista Maria Gadú e a indígena Alice Pataxó.

Gadú reparou que a produção do evento utilizou copos de isopor e garrafas plásticas no camarim e disparou: “é muito importante que as empresas estejam à frente nessa discussão“.

Este foi o momento em que a ‘dona da casa’, a marca Americanas, ficou exposta a seus próprios problemas e fragilidades. A poderosa varejista ficou por um instante sem ter como se defender.

Astrid & Linn

Reprodução: Americanas Summit / YouTube

O último painel do dia foi protagonizado pela apresentadora Astrid Fontenelle e pela poeta, funkeira, diretora de cinema, atriz e cantora, Linn da Quebrada.

Tokenismo 🫱🏾‍🫲🏼 Transfobia

Depois da conversa com Astrid, Linn encerrou o Americanas Summit 2021 com um show. No repertório, as músicas do álbum mais recente, Trava Línguas – uma obra menos comercial que o álbum anterior, Pajubá – o que deixou de lado sucessos que a alçaram à fama nacional, como Bixa Preta, Enviadescer, e outras.

Reprodução: plataforma Americanas Summit 2021
Reprodução: plataforma Americanas Summit 2021

Os comentários dos participantes na plataforma do evento foi em tom leve, educado e até elogioso durante toda a tarde, exceto no final.

Dois participantes homens e uma mulher começaram a criticar e a hostilizar, com ironia e sarcasmo nitidamente transfóbicos, a apresentação da artista trans.

Coube aos demais participantes se posicionar. Um dos comentários em apoio à artista teve mais de 15 curtidas.

Invisibilidade visível

Uma matéria da revista Exame, publicada um mês antes do Americanas Summit, já invisibilizava a única atração artística do evento, Linn da Quebrada. A matéria não menciona a artista nem uma vez. Além do show, Linn já estava escalada para o debate com Astrid e Ana Clara.

Reprodução: plataforma Americanas Summit 2021

Enxergar o tokenismo é o primeiro passo

Martin Luther King, lá nos anos 1960, foi o primeiro a utilizar o termo. O tokenismo trata-se de uma inclusão simbólica de grupos minoritários e seu significado vem da palavra “token”, que significa “símbolo” em inglês.

Em um artigo publicado em 1962, Luther King afirma que o tokenismo serve apenas para dar uma imagem progressista, sem o esforço real de incluir as minorias e fazer com que elas tenham direitos iguais aos do grupo dominante. Um exemplo prático é quando uma organização ou projeto incorpora um número mínimo de membros de grupos minoritários somente para gerar uma sensação de diversidade ou igualdade.

Mal sabíamos que o copo de isopor e as garrafas de plástico escondiam um desafio ainda maior: uma das marcas mais queridas do Brasil ainda não tem o traquejo, a desenvoltura e o exemplo necessários para se colocar como protagonista nos importantes e necessários debates que ela mesma propõe.

Podemos seguir aplaudindo os debates sobre diversidade protagonizados por ‘pessoas diversas’ que aceitam os papéis de tokens em um contrato transparente e lucrativo para ambas as partes.

Podemos ir além de debates tokenizados? Seria possível as megaempresas se colocarem em defesa das corporalidades diversas, para que não estejam só a serviço do espetáculo?

Um dos principais desafios das empresas que se comprometem com a pauta da diversidade é justamente ter diversidade nas altas posições. Se realmente estiverem interessadas em promover a ascensão dessas pessoas, o mínimo que devem fazer é garantir que os ‘diversos’ não sofram violência em um ambiente totalmente controlável.

Se as intenções são boas como diz a embalagem, o ocorrido vai se tornar a oportunidade de abrir os caminhos de promoção da equidade, não só de raça e gênero, mas também de múltiplas corporalidades.

O evento está disponível, na íntegra, no YouTube do Americanas Summit. A plataforma exclusiva, que foi desenvolvida especialmente para a interação entre os participantes, não está mais no ar.

Alterações em 30 de setembro de 2023: nota do autor

Publicado originalmente com o título “Cuidado com o tokenismo corporativo“, este texto continha uma série de imprecisões, principalmente no termo “tokenismo corporativo”. Como viemos a refletir após a publicação, tokenismo não se limita ao meio corporativo, e não existe uma área de estudo acerca desde aspecto específico do tokenismo. Lamentamos o equívoco e esperamos que as alterações tenham minimizado as imprecisões.

Tiago escreve sobre tecnologia, política e desafios sociais contemporâneos. É editor e redator em Vida Indigital, e redator voluntário na Rede de Produtores de Conteúdo da Politize!, uma ONG dedicada à Educação Política. É jornalista e especialista em Ciências Humanas pela PUCRS. Trabalhou e empreendeu no varejo de livros por mais de 10 anos.
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