A fim de garantir o acesso à universidade e a construção cientifica por pessoas trans que tem sido prejudicada historicamente devido ao processo de apagamento social da sua identidade e expressão de gênero, que tem expulsado nossos corpos dos bancos escolares e impossibilitando a chegada ao ambiente acadêmico, ou ainda àquelas que mesmo tendo conseguido entrar na universidade, encontram dificuldades motivadas por sua condição para a continuidade, devido a fatores sociais e situação de vulnerabilidade, que se encontram para cotas na pós-graduação.
Uma sociedade democrática, pautada na garantia e acesso aos direitos humanos e fundamentais, apresenta muitos desafios quando se propõe na implementação de políticas públicas efetivadoras de ações afirmativas, atentas a critérios identitários, em contextos marcados historicamente por formas persistentes, disseminadas e sofisticadas de discriminação. Nesse cenário, não se pode deixar de reconhecer o valor da proposição de ações afirmativas, políticas que buscam abrir caminhos e conquistar espaços em domínios antes reservados aos privilegiados, cujas regalias alimentaram formações identitárias hegemônicas marcadas pelas vantagens da cisgeneridade e subordinação violenta e histórica de travestis e demais pessoas trans.
Cabe ressaltar que de acordo com informações sobre a situação educacional das pessoas trans, estima-se que cerca de 70% não concluiu o ensino médio e que apenas 0,02% encontram-se no ensino superior. E este cenário nos leva a reflexão sobre como as cotas cumprem um papel de inserir e garantir a continuidade de pessoas trans na universidade, já consolidadas como políticas de acesso para aquelas pessoas que enfrentam violações e violências ao longo de suas vidas que impedem o processo educativo devido a sua condição, identidade e expressão de gênero.
Dois desafios principais estão postos quando discutimos a educação formal: a conclusão do ensino fundamental e médio, e o acesso a universidade. Sem que uma luta invalide a outra ou que se contraponham quando pensamos em propostas para o enfrentamento dessa problemática. Aliando o enfrentamento da exclusão que segue naturalizada no ambiente escolar e as dificuldades que se apresentam no processo escolar/acadêmico, inclusive a proposição de políticas para o acesso a educação formal é uma das prioridades pautadas pelo movimento nacional de travestis e transexuais desde o início de sua organização.
Reafirmamos que a discussão não deve ser pautada sobre dizer quem é ou quem não é trans. Quando a regulamentação da política de cotas fala de “aferir”, “verificar” a “veracidade”, não se trata de uma pretensa “verdade sobre a identidade”, no sentido de um realismo ontológico, apelando para dados biológicos, essências irredutíveis, fixas e cristalizadas, ou porta-vozes indiscutíveis e “donos da verdade”. Como visto, o que importa para as ações afirmativas é a “identidade social”, resultante histórico, social, coletivo e cultural, dos processos onde são atribuídas identidades, socialmente engendradas, a indivíduos e grupos.
Atualmente, o principal fator que está prejudicando a efetividade das cotas raciais para o ingresso de travestis e demais pessoas trans nas universidades tem sido a utilização das mesmas por pessoas desonestas ou que não entenderam os objetivos que permeiam a criação da reserva de vagas, se utilizando de autodeclarações duvidosas ou de situações que não coadunam com a realidade socioeconômica, vivências ou expressão de gênero que as condicionem à discriminação e marginalização apregoadas a partir da leitura social identitária para usufruírem de direitos que não lhes são legalmente pertencentes. Não bastasse toda a polêmica em torno da constitucionalidade de ações afirmativas baseadas na identidade de gênero, ter ainda poucas universidades que tem se debruçado sobre o tema e criado esse acesso, e as perseguições que essas políticas enfrentam, temos visto de forma recorrente várias questões na implementação dessas políticas, em especial quanto à identificação dos seus destinatários.
É urgente tornarmos público a discussão sobre os objetivos da política de cotas/reservas de vagas, que não deve levar em consideração o critério exclusivo da autodeclaração, mas buscar compreender todos os fenômenos sociais, culturais e políticos que dificultam o acesso a universidade e as próprias cotas, a fim de assegurarmos que as pessoas trans vulneráveis (sujeitos do direito) sejam as beneficiárias efetivas e possam gozar do acesso que vem sendo conquistado, mas que tem enfrentado resistência em diversos espaços e denuncias públicas de fraudes.
Ações afirmativas são medidas que, conscientes da situação de discriminação e vulnerabilidade vivida por certos indivíduos e grupos, visam a combater tal injustiça, por meio da adoção de medidas concretas e benéficas (Rios, 2008: 156); no desenho das respectivas políticas públicas, a identificação de seus destinatários é elemento crucial, sem o qual compromete-se a legitimidade e a efetividade das medidas positivas.
Cabe mencionar que não são para toda e qualquer pessoa trans, de forma indiscriminada, que essa política se destina. São necessários diversos olhares e a observação de contextos específicos para que a pessoa trans se torne elegível ao usufruto da política. Avaliando ainda a classe e contexto social, a forma com que a transfobia afeta diretamente o processo educacional da pessoa, as dificuldades que ela enfrenta no dia a dia por ser uma pessoa trans e como a sociedade se relaciona com seu corpo, sua identidade e expressão de gênero, no momento em que a presença da pessoa denuncia sua própria condição “abjeta” sem que a mesma precise verbalizar que se trata de uma pessoa trans. Além disso, é sabido que existe um perfil prioritário que coloca corpos trans, majoritariamente negros, na marginalização e em situação de vulnerabilidade social, gerando empobrecimento e enfrentando contextos violentos, e muitas vezes degradantes. Dificultando o acesso a direitos sociais básicos que impactam a própria existência e a estimativa de vida de nossa população a depender dos acessos que a pessoa tem alcançado ou não.
Travestis e mulheres transexuais, especialmente, são alvo preferencial da transfobia com os maiores índices de violência direta, indireta e suicídio, além de representaram o maior número quando analisamos dados sobre o assassinato, em torno de 98% dos casos, por expressarem o gênero marcado em suas expressões de gênero femininas e afirmação de uma identidade pública cercada por estigmas. E nesse processo, modificações corporais e o uso de símbolos que marcam a identidade de gênero não cisgênera constituída sob uma estética travesti, apesar de não serem determinantes da identidade de cada pessoa, marcam o destino social daquelas que vivenciam uma precariedade especifica devido a sua leitura social em detrimento da cisgeneridade.
É necessário as pessoas entenderem que muitas pessoas trans que passaram a se reconhecer mais recentemente como não cisgenêras ou a se identificar com alguma inconformidade de gênero, muito em função da luta dos movimento trans, não experienciaram a maior parte das violações as quais nos referimos. O que não quer dizer que não enfrentaram outras, ou que não foi violento para elas. Mas que são questões e momentos indiscutivelmente diferentes. Não se trata de hierarquizar experiências, mas de evidenciar que há diferenças significativas em como a sociedade se relaciona com um determinado perfil identitário e corporal, em detrimento de outros. Principalmente para que as identidades historicamente constituídas no Brasil e toda a sua trajetória não sejam preteridas no acesso as conquistas que chegam com largo atraso e deixando de cumprir a responsabilidade com essas pessoas que já estavam há anos aguardando a efetivação desses direitos.
Chamamos atenção para as armadilhas sobre os riscos que o mau uso dessa política podem nos causar. Dentre elas, a possibilidade de serem gerados precedentes negativos para políticas onde a autodeclaração se torne um critério exclusivo, e a perseguição ou extinção da mesma por gestores ou outros grupos mal intencionados, que podem se valer da justificativa sobre a possibilidade de fraudadores para negar, reduzir, extinguir ou deixar de aplicar a política de cotas, ao invés de criar e melhorar mecanismos capazes de enfrentar possíveis fraudadores que representam uma parcela mínima, apesar de existirem. Não se combatem as fraudes excluindo a política, mas identificando e responsabilizando possíveis fraudadores.
Nesse sentido, a criação de comissões de validação de autodeclaração, com a participação de pares dos sujeitos avaliados, tem se mostrado medida urgente e necessária para o alcance pleno das políticas públicas de inclusão da população trans nas universidades públicas brasileiras, pois as cotas, isoladamente, garantem apenas as vagas, não garantindo que os verdadeiros destinatários dessa ação afirmativa usufruirão destas.
A concretização das ações afirmativas requer, dentre outras, a capacidade de compreensão da identidade e expressão de gênero, do cissexismo, da transfobia, dos processos de subalternização das pessoas trans, das nuances e dinâmicas dos processos de subjetivação e constituição, no mundo social, das identidades trans de modo contextualizado. No exercício de sua tarefa heteroidentificatória, a comissão deve corrigir eventual auto atribuição identitária equivocada, à luz dos fins da política pública, iniciativa que não se confunde com lugar para a confirmação de percepções subjetivas ou satisfação de sentimentos pessoais, cuja legitimidade não se discute nem menospreza, mas que não vinculam, nem podem dirigir, a política pública.
Cotas são uma conquista imensurável e urgente para a população trans. Precisamos ampliar e garantir que mais universidades implementem essa importante política afirmativa e que as pessoas trans que precisam desse acesso possam realmente ter a oportunidade de entrar no ambiente acadêmico e seguirem contribuindo para a (re)construção de uma universidade capaz de assegurar as existências trans e sua potencialidades.
E é exatamente por isso que devemos pautar essa discussão no âmbito publico, buscando embasamento cientifico e social, a fim de que as pessoas trans entendam todo o processo que envolve a política de cotas, as defendam e contribuam no processo de fiscalização das mesmas para que as fraudes sejam identificadas e denunciadas.
Brasil, 17 de dezembro de 2020.
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS
Baixe a nota na íntegra no site da ANTRA: Nota Pública da ANTRA – Cotas/Reserva de vagas para pessoas Trans em universidades