Por Bruno Fonseca, da Agência Pública
Bruno Langeani diz que Bolsonaro incentiva a desobediência civil ao mesmo tempo que facilita acesso a armas: “resultado pode ser explosivo”. Porte ilegal de armas pode levar de 4 a 6 anos de prisão; denúncia do Sou da Paz aponta indício de formação de milícia.
Na última terça-feira, a militante Sara Winter, principal porta-voz do grupo que acampa em Brasília em apoio ao presidente Jair Bolsonaro, admitiu a existência de armas com os manifestantes à BBC Brasil. A declaração da ex-funcionária do Ministério de Direitos Humanos, caso comprovada, pode revelar a prática de um crime contra a Constituição, segundo denúncia que acaba de ser enviada pelo Instituto Sou da Paz ao Congresso Nacional, à polícia do Distrito Federal e ao Ministério Público (MPF-DF) (leia aqui a denúncia completa). Nesta quarta, após a denúncia, o MPF apresentou na Justiça uma ação civil pública pedindo em caráter de urgência o fim do acampamento.
A Agência Pública entrevistou Bruno Langeani, gerente de projetos do Sou da Paz, que elaborou a denúncia. Ele é claro: no artigo 5º da Constituição está previsto que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público” e que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
De acordo com, Langeani, “podemos estar à beira de uma tragédia, se não forem tomadas nenhuma providência”, diz. “Cria-se um incentivo para que essa escalada vá aumentando”. Um dos grupos que pode estar em maior risco são os policiais e agentes de segurança, muitos dos quais eleitores de Bolsonaro.
“Está havendo um incentivo à desobediência civil pelo presidente Bolsonaro. E a liberação de armas nesse contexto é absolutamente explosiva”, alerta. Leia a entrevista.
A militante Sara Winter, em entrevista à BBC, afirmou que há pessoas com armas “para proteção dos próprios membros” no grupo que acampa em Brasília. A legislação brasileira permite que essas pessoas estejam armadas em espaço público, em um contexto de manifestação política?
Não, a Constituição Federal veda reuniões de intuito político com pessoas armadas. Aquele é um acampamento evidentemente político, de um grupo que tem feito manifestações e apoiado ideias antidemocráticas, como o fechamento de instituições, como o STF, além de algumas falas mais ameaçadoras, contra deputados e ministros. O Artigo 5 da Constituição veda reuniões armadas, pelo simples fato da democracia pressupor um debate de ideias não violento. Além disso, temos também o Código Penal sobre formação de milícias, o Artigo 288 trata como crime a formação de milícias armadas.
Essas pessoas armadas estariam cometendo um crime contra a Constituição?
Com certeza. A denúncia é muito grave e deveria demandar uma ação imediata da polícia. Isso porque a gente está vivendo um momento no qual a retórica de violência política tem aumentado muito, até estimulada pelo próprio presidente.
No Brasil, nós já assistimos a manifestações que terminaram em tiro. Foi em Brasília, em novembro de 2015, em um acampamento na Esplanada semelhante a esse, que defendia intervenção militar. Havia dois policiais de folga acampados defendendo a intervenção que fizeram disparos contra participantes da Marcha das Mulheres Negras. Isso é um caso real e que guarda muitas semelhanças com o que estamos vendo hoje nesse acampamento dos “300” em Brasília.
E se quisermos um caso mais recente, tivemos em março em São Paulo, na avenida Paulista, em uma manifestação contra as medidas isolamento social, um policial aposentado fez disparos que atingiram uma manifestante na perna e felizmente não resultou em morte.
É importante lembrar desses casos, porque, com o nível de violência e polarização que temos e o nível de agressividade desse grupo que está acampado, acrescentar o elemento de arma de fogo pode ter um resultado explosivo. Podemos estar à beira de uma tragédia, se não for tomada nenhuma providência.
Segundo a militante, as armas seriam de colecionadores, caçadores e atiradores desportivos (CACs) ou pessoas com porte legal. A lei permite que esses grupos portem armas fora de casa, nesse contexto?
Com o Estatuto do Desarmamento, as pessoas que têm registro de armas, seja pela Polícia Federal, seja para defesa pessoal ou outros tipos de registro no Exército, como no caso de caçadores e atiradores (CACs), podem manter essa arma na sua casa ou no seu estabelecimento comercial, caso você seja um empresário. Mesmo a Sara Winter afirmando que algumas pessoas são CACs, a nossa leitura é que há uma violação por ser uma manifestação política.
Especificamente sobre os CACs, houve em 2017 uma liberação do Exército — que acreditamos que seja, inclusive, inconstitucional —, deixando que atiradores pudessem levar consigo uma arma carregada no percurso entre a sua casa e o clube de tiro. E depois em 2019, Bolsonaro estendeu essa prerrogativa para também colecionadores e caçadores. De qualquer maneira, mesmo se você considerar que esse é decreto é legal, a prerrogativa é simplesmente para o deslocamento entre a casa e o clube de tiro, ou entre a casa e o lugar da caça. Então, essa permissão não se enquadra para você colocar a arma na cintura e ficar em um acampamento, participando de manifestações. É ilegal da perspectiva do Estatuto do Desarmamento e, no nosso entendimento, viola outras tantas leis.
Na prática, como é fiscalizado o porte de armas de CACs no Brasil? Como as autoridades podem verificar se o cidadão está no caminho para uma aula de tiro ou caça esportiva?
Na verdade, é muito difícil fazer essa fiscalização porque depende da avaliação subjetiva do fiscal. Temos desde casos de CACs sendo levados para a delegacia para esclarecer, mas também temos casos de CACs sendo pegos de madrugada com arma na cintura.
No fundo, acreditamos o decreto seja uma violação, é inconstitucional, porque uma portaria ou decreto não podem ir contra uma lei. E o Estatuto do Desarmamento diz que o porte para civis é proibido, salvo em casos excepcionais. Vemos como um subterfúgio, como uma tentativa de driblar a legislação.
Há alguma punição para esses CACs portarem armas carregadas sem estarem no trajeto da prática desportiva?
A punição é a mesma da punição geral. É enquadrado como porte ilegal de arma e vai depender um pouco se a arma é de calibre restrito ou permitido. No porte ilegal de armas de uso permitido, a punição é de até 4 anos de prisão. Se for porte de arma de uso restrito, a pena máxima é de 6 anos.
No caso do protesto em São Paulo, na qual um policial aposentado disparou e atingiu uma mulher: esse cidadão, mesmo com direito a porte de armas, poderia estar armado em uma manifestação política?
Não. A pessoa que vai a uma manifestação política, mesmo tendo porte de armas, tem que respeitar esse preceito constitucional que é a lei suprema do Brasil. Se a pessoa está indo para se manifestar, ela tem que abdicar de levar armas para a manifestação, mesmo ela tendo essa prerrogativa do porte de arma. É importante deixar claro, porque é uma coisa bastante perigosa e é por esse motivo que a Constituição veta esse tipo de manifestação armada.
Mesmo no meio da pandemia, o presidente Bolsonaro tem fomentado a compra de armas e munição por civis. Recentemente, ele publicou um decreto que aumentou a quantidade de munição que civis podem adquirir. Quais os impactos dessas medidas?
O presidente é obstinado por esse tema, foi uma das primeiras medidas que ele tomou quando assumiu o cargo: facilitar a compra de armas.
Olhando em perspectiva, tivemos uma série de flexibilizações no acesso às armas. Ele facilitou a compra. Houve um aumento em quatros vezes na potência das armas permitidas para civis. Hoje civis podem ter armas de calibres que antes eram exclusivas das forças de segurança. E houve também uma série de flexibilizações tanto para CACs, quanto para cidadãos comuns. Antes, havia uma possibilidade de compra de uma cota anual de até 50 munições por ano e por arma, hoje isso passou para 50 por mês. Então, uma pessoa que tivesse um revólver calibre 38, que é uma arma muito comum nas mãos de civis, antes ela poderia comprar 50 munições e hoje ela pode comprar 600, sem nenhum tipo de justificativa e sem precisar apresentar como obteve essa munição.
Essas medidas podem afetar o monopólio do uso da força do Estado. Se a gente pensar que tem pessoas que hoje podem ter uma carabina semi automática, estamos falando inclusive de uma ameaça para os policiais, que vão cumprir uma ordem legal, por exemplo. E tem um outro problema, que é a questão de desvios de munição e armas.
Quando você permite um número absurdo de compra de munições, sem nenhum tipo de justificativa e sabendo que as munições vendidas para uso pessoal não são marcadas, você abre uma possibilidade muito grande de um desvio dessas munições para o mercado ilegal, com uma chance de impunidade altíssima. Como não é rastreado, você não consegue chegar à pessoa que desviou.
E o terceiro ponto, é a questão das milícias. A gente tem visto o fortalecimento e surgimento de milícias em vários estados, o mais emblemático é o Rio de Janeiro. Se você permite que as pessoas comprem 10, 15, 20 armas e uma quantidade absurda de munição, que façam recargas de munição em casa, você está barateando a arma no mercado ilegal.
É um pouco dentro da lei de oferta e demanda: se antes era muito caro você acessar esse fuzil no mercado ilegal por não existirem muitos no Brasil, agora, com essa abertura e facilidade, o preço vai caindo e facilita o armamento tanto de milícias como de outros grupos e facções.
Há governadores e prefeitos receosos que a população não aceite medidas de isolamento mais radicais, incentivados pelo próprio presidente, que tem questionado essas medidas e os governantes locais. Não é ainda mais arriscado, no meio da pandemia, aumentar a capacidade dos civis de ser armarem?
Se olharmos para alguns sinais emblemáticos, essa preocupação é muito pertinente.
Temos visto Bolsonaro fazer uma oposição muito forte a governadores e prefeitos que estão buscando medidas de isolamento de acordo com as recomendações sanitárias. Isso tem gerado uma tensão muito grande com resultados reais, como manifestantes nas ruas pedindo o impeachment de governadores e os ameaçando de morte.
Além disso, quero chamar atenção para dois casos bastante emblemáticos que mostram os riscos desses incentivos velados do presidente.
Carlos Bolsonaro, filho do presidente, compartilhou um vídeo de um clube de tiro no qual 15 manifestantes bolsonaristas disparam armas gritando “Bolsonaro”, alguns deles gritando ameaças ou xingamentos ao governador João Dória (PSDB). Vamos lembrar que atiradores, colecionadores e caçadores foram as categorias mais beneficiadas pelo presidente e que, no meio da pandemia, o presidente sustou portarias que melhoraram a marcação e rastreio de armas para atender a um pedido desse grupo
O segundo caso é do outro filho do presidente, o mais novo, naquele chat em uma rede social de games. Ele disse que se todo mundo tivesse uma arma em casa, esse isolamento social não estaria acontecendo. É uma analogia à pressão que manifestantes armados poderiam fazer contra governadores.
Está havendo um incentivo à desobediência civil pelo presidente Bolsonaro. E a liberação de armas nesse contexto é absolutamente explosiva.
Isso não representa um risco para os próprios policiais, que atuam em manifestações ou precisam garantir o cumprimento do isolamento?
Essa preocupação coloca um paradoxo na questão das forças de segurança. Se lembrarmos, houve muitos policiais na base de apoio do Bolsonaro durante as eleições. E na nossa avaliação, os policiais são os primeiros a sofrer caso essa situação saia de controle.
O número de civis com armas, apenas a questão dos CACs por exemplo, em muitos estados eles superam o número de policiais. E se a gente falar também em superioridade de armas, como o Bolsonaro liberou o calibre .40 e o calibre 9mm como arma de calibre permitido para qualquer cidadão, você coloca em uma situação em que um policial que vai atender uma ocorrência pode estar em inferioridade de armas com o cidadão.
E pensando em um cidadão que eventualmente esteja fora das faculdades mentais, como acontece muitas vezes, a gente tem um risco muito grande. Para citar um caso, tivemos aqui em São Paulo no ano passado um corretor de imóveis que era CAC e tomava remédios controlados. Ao vender um veículo, houve um problema na negociação e chamaram a polícia. Ele subiu no apartamento e fez disparos contra os policiais que estavam atendendo a ocorrência. Felizmente, ninguém se feriu gravemente.
Mas esse é o tipo de situação que pode se agravar quando a gente junta uma incitação à desobediência civil, um acirramento das narrativas contra os governadores e na outra ponta, uma facilitação ao armamento da população.
Se a gente não tiver respostas à altura dessas ameaças graves, quando você tem uma manifestação que pede o fechamento do Congresso, do STF, que tem manifestantes ameaçando pessoalmente e institucionalmente poderes da República, se há gente armada ali e nada acontece, cria-se um incentivo tácito para que essa escalada vá aumentando.
A situação de civis armados em manifestações tem lembrado a realidade dos Estados Unidos, onde essa cena é comum. O governo de lá tem inclusive problemas com grupos milicianos armados. É uma realidade para a qual estamos caminhando aqui no Brasil?
Acredito que ainda estamos bem longe. Nos EUA temos a Segunda Emenda que facilita o porte de armas, está na Constituição deles e não temos isso no Brasil. Lá o nível de arsenal nas mãos de civis ocorre proporções muito superiores.
Contudo, um paralelo que vale ficarmos atentos é que as próprias forças de segurança dos EUA, incluindo o FBI, já começaram a classificar esses movimentos como terrorismo doméstico.
Movimentos de extrema direita, de supremacia branca, quando armados, estão sendo classificados como terrorismo doméstico e, em muitos casos com avaliação de nível de risco e ameaça muito superiores a grupos extremistas que antes eram os principais riscos à nação. Isso mostra um pouco onde podemos chegar caso não se coloque um freio tanto na escalada retórica de violência política, quanto na liberação de armas.
A medida de Bolsonaro de impedir o rastreio de armas e munições controladas pelo Exército, que havia sido normatizada pelas próprias Forças Armadas, atende ao interesse de empresas que vendem vendem armas e munições?
Eu acredito que atenda especificamente ao interesses de empresas estrangeiras. Porque as empresas nacionais já tinham a tecnologia para fazer a marcação exigida nessas novas portarias. Então, na nossa avaliação, ela atende a grupos de fabricantes estrangeiras que não querem ter nenhum tipo de compromisso com entrada de armas no Brasil e também a grupos muito específicos de CACs que não querem ser controlados. Quem desenvolve atividades ilegais é beneficiado pela falta de controle e rastreamento.
O general Eugênio Pacelli Vieira Mota, responsável pela portaria, defendeu o rastreio de armas e munições. Houve desgaste do Bolsonaro com o Exército?
Fica muito claro que o pessoal técnico dessa área do Exército, do Departamento de Fiscalização de Produtos Controlados do Comando Logístico, estava defendendo as medidas de rastreamento que o presidente atravessou. Agora, se de fato, essas instituições como o Exército, Polícia Federal, que sempre se colocam como instituições de estado, de carreira, técnicas e que não se dobram a interesses de governo, elas precisam começar a oferecer algum tipo de resistência a essas vontades do presidente.
Se a carta do general atesta que as medidas de rastreamento trazem melhorias, por que se decide revogá-las, em um pedido do presidente sem justificativas? Isso é muito grave, por ao fim, as consequências desses atos não caem só sobre o presidente Bolsonaro, mas sobre as pessoas que deram o aval para essas mudanças sem nenhum tipo de questionamento.
Apesar de você ter uma maioria de CACs que cumprem a lei e estão interessados em fazer, de fato, o tiro esportivo e colecionar armas, a gente sabe que as brechas servem também para cometer crimes. O caso mais emblemático disso é o executor da Marielle que tinha registro no Exército de colecionador válido até o ano que vem.
Toda vez que o Exército abre essas brechas para atender interesses de grupos privados, as consequências desses atos também recaem sobre o Exército.