O que 8 ultrarricos pensam sobre as desigualdades e as próprias fortunas

Alguns ricaços entendem que os lucros futuros dependem da redistribuição das riquezas.

Alguns ricaços entendem que os lucros futuros dependem da redistribuição das riquezas.

Foto: Lyman Gerona (do Unsplash)
Com informações das fontes 
citadas ao longo do texto.
(atualizado em 23/02/2020)

Em 2014, quando Jeff Bezos fundou o Bezos Center for Innovation em Seattle, o CEO da Amazon já figurava na lista de pessoas mais ricas do mundo. Com a fortuna, vieram também as críticas de quem o considera um empresário que não gosta de pagar impostos.

Apenas pague seus impostos, Sr. Bezos, diz o site dos autointitulados Patriotic Millionaires – uma associação de ultrarricos que Abigail Disney, uma herdeira do conglomerado Disney, ajuda a coordenar. Ela, que se considera uma traidora da classe, defende a proibição de jatos particulares, e se sente culpada pela quantidade de CO² produzida por uma única pessoa a bordo.

É por isso que os ricos têm jatos particulares e limousines com janelas pintadas

Abigail Disney
Reprodução: The New Yorker

Abigail tem uma produtora independente, a Fork Films, e uma fortuna de US$120 milhões, conforme ela contou ao Financial Times. As diferentes origens das fortunas de Abigail Disney e Jeff Bezos – ela, uma herdeira que alega investir um terço do patrimônio em causas que apoia de diversas formas, e ele, um homem que construiu um império maior que o PIB de 100 países e emprega mais de 750 mil pessoas – evidenciam a complexidade do embate de ideias e a dificuldade para abordar um tema desta magnitude.

Essas fortunas geram certo desconforto em quem não as possui, mas também preocupação nos donos delas de formas distintas. Warren Buffett, o 4º mais rico do mundo com uma fortuna de US$90 bilhões, declarou à CNN Business em 2018 que “as pessoas não precisam de um salário mínimo, precisam de uma quantia máxima de dinheiro no bolso”.

Sob o ponto de vista da urgência de quem precisa mais, os ricos parecem viver sob o efeito de endorfinas poderosas, um eterno torpor acompanhado de lucros. 2019 foi um ano excepcionalmente bom para os ricaços.

Se houvesse uma forma de resumir as ideias dos magnatas que já sabem que precisam fazer algo sistêmico, ela está ligada aos impostos. Uns acham que pagam pouco; outros, que pagam muito. Uns acreditam que é através de políticas públicas com aplicação de recursos arrecadados com mais impostos sobre os mais ricos o caminho para a prosperidade; outros, que o Estado deve ser mínimo, e que os ricos fazem o bastante com doações e filantropias. Há quem defenda um equilíbrio. Quem está certo e como coordenar de fato todos os esforços?

Sua margem é minha oportunidade

Jeff Bezos (reprodução: Wikimedia)

Para ser membro do Patriotic Millionaires, é necessário se autoproclamar um(a) “traidor(a) da classe”, e “ter alto patrimônio líquido, ser líder empresarial ou investidor(a) preocupadx com a concentração desestabilizadora de riqueza e poder na America”. Ou seja, os ricaços dos EUA estão sim preocupados, mas não com o mundo: com aquilo que eles entendem como “America”.

Como donos do dinheiro, são livres para ajudar naquilo que dá match com a estratégia de relações públicas, sem depender da relação institucional com governos ou de políticas públicas para a aplicação dos recursos.

Sem envolvimento com o Patriotic Millionaires, Jeff Bezos aumentou o valor mínimo da hora trabalhada para US$15 na Amazon, o que gerou reações no meio político. Bernie Sanders, o pré-candidato democrata mais à esquerda, elogiou a atitude do magnata.

Sem dar detalhes, Jeff Bezos também anunciou a criação de um fundo bilionário de salvação do planeta Terra direcionado a cientistas, ativistas e ONGs. “Estou comprometendo US$10 bilhões para começar e vamos iniciar as doações neste verão. A Terra é a única coisa que todos temos em comum – vamos protegê-la juntos”, anunciou no Instagram.

De uma forma ou de outra, a distribuição de riqueza não está ocorrendo.

É o que diz o último relatório PNUD. O Brasil ocupa a desastrosa 79º posição no ranking do IDH. Os Estados Unidos ocupam a 16ª posição, e os ricos de lá parecem mais engajados e arrojados em causas relacionadas à desigualdade do que os ricos brasileiros. O protagonismo dos ricos norte-americanos na luta contra a desigualdade tem paralelos possíveis, com alguma licença crítica, no Brasil.

Ao longo dos próximos 15 anos, vai acontecer a maior transferência de riqueza entre gerações da história da humanidade

Marina Feffer (reprodução: Zest Impact)

Integrante de uma das famílias mais ricas do Brasil, Marina Feffer fundou e lidera a Generation Pledge, uma organização sem fins lucrativos que prega a doação de 10% de fortunas advindas de heranças e direciona famílias e herdeiros aos investimentos de impacto. Ao Valor Econômico, ela disse que “com alinhamento científico e uso de muita inovação, a filantropia, se benfeita, é um tipo de moeda (…) que pode se dar ao luxo de tomar muito risco e de modelar o pensamento social dos indivíduos”.

As diferenças de método podem ser sutis, mas enquanto os Milionários Patrióticos têm um enfoque ligado ao aumento de impostos sobre os ultrarricos, a Generation Pledge tem a filantropia como base de ação, e passa uma imagem de startup especializada em aconselhamento e gestão de recursos de ricos que querem doar mas não sabem muito bem o que fazer com o dinheiro. Além da Generation Pledge, Marina também participa do projeto filantrópico da família, a Fundação Arymax, e de outros, como o Instituto Jatobás, fundado por Betty Feffer, e o Instituto Samuel Klein, fundado pelo ex-dono das Casas Bahia.

No Brasil, as famílias com grande patrimônio têm papel de liderar a construção e expansão desse mercado de investimentos de impacto

Marina Cançado (Foto: Valor Econômico)

Outra jovem milionária brasileira encabeça a lista de ricos engajados. Marina Cançado tem 31 anos, é herdeira de uma rede de farmácias do interior de São Paulo, e foi consultora de educação financeira para beneficiários do Bolsa Família de 2014 a 2017. Também participa da Agenda Brasil do Futuro, um grupo de jovens herdeiros ligado ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e em 2019, passou seis meses se reunindo com investidores e administradoras de fundos em todo o mundo. Voltou filiada ao The ImPact, uma iniciativa filantrópica de Justin Rockefeller – um sobrenome que já diz tudo – e com o primeiro Converge Capital Conference (CCC 2020) confirmado. O evento ocorreu dias 13 e 14 de fevereiro no Rio de Janeiro.

Mais líderes empresariais aderem à ideia de que a desigualdade atingiu níveis perigosos. Em abril de 2019, Ray Dalio, fundador do Bridgewater Associates, fundo de hedge de US$160 bilhões de dólares, publicou um longo ensaio no LinkedIn, no qual escreveu que entre os trabalhadores americanos, 60% dos assalariados não tiveram crescimento de renda desde 1980, mesmo depois de ajustar a inflação. Enquanto isso, os rendimentos dos 10% mais ricos dobraram, e os rendimentos do 1% mais rico triplicaram.

A maioria dos capitalistas não sabe dividir o bolo da economia e que a maioria dos socialistas não sabe bem como o fazer crescer

Ray Dalio (reprodução: Wikimedia)

Na ocasição, muitos o taxaram de exagerado e de ter manipulado dados – apesar de a desigualdade ser um tema visivelmente inquestionável, sendo os números exatos algo secundário.

Uma tarefa nada fácil é construir a imagem de que você é a 58ª pessoa mais rica do mundo e, ao mesmo tempo, é honesta. Nada que uma boa estratégia de relações públicas não resolva.

Essa espécie de ‘despesa social’ acaba se traduzindo em várias frentes de projetos: as artes, a ciência e a difusão de conhecimento saem ganhando. E também a competição por esses recursos. Um dos projetos que Abigail Disney mantém é uma bolsa de incentivo à criação audiovisual através da produtora Fork Films, em Nova York, dedicada exclusivamente a produções com temáticas identitárias e inclusivas. Para contrastar, ela se diverte lembrando que na infância teve tudo para se tornar uma adulta republicana: “minha mãe era Fox News antes de existir Fox News”.

Acho que os ricos devem pagar mais do que atualmente, e isso inclui Melinda e eu.

Bill Gates (reprodução: GatesNotes)

Bill Gates, o número dois do mundo, é considerado “um rico inteligente” por Eduardo Moreira – um milionário brasileiro que também se considera um “traidor da classe”, embora não faça parte de um grupo equivalente ao Patriotic Millionaires no Brasil. Com canais independentes e certa abertura com políticos de esquerda, ele enche de culpa os ricos brasileiros que se atrevem a assistir um de seus vídeos ou ouvi-lo em entrevistas.

Com o currículo de economista, escritor, ex-banqueiro e Youtuber espalhado por toda a construção da imagem digital, Edu Moreira transita com facilidade nos diversos espectros do fragmentado campo progressista brasileiro, e pode ser visto em conversas com o ex-presidente Lula, Ciro Gomes, Fernando Haddad, Randolfe Rodrigues e outros em vídeos no próprio canal e em entrevistas. É casado com a atriz Juliana Baroni.

Para ele, o Brasil é um paraíso fiscal dos ricos, e acusa o sistema tributário brasileiro de ser uma máquina de perpetuação da injustiça social. Ele também empresta a imagem de ex-banqueiro arrependido às aulas nem sempre gratuitas sobre investimentos.

O curso Investidor Mestre, por exemplo, segue todo o roteiro dos clichês de gurus das finanças. É um curso com a 1ª aula gratuita que ensina noções do funcionamento macroestrutural da economia do País e como lucrar com segurança em cenários de incertezas como o atual.

O que o diferencia dos demais é o discurso feroz contra o que ele chama de picaretagem no sistema financeiro. Assim como Natalia Arcuri declarou guerra aos Sidnelsons (se referindo aos gerentes do banco), Eduardo Moreira pega pesado e generaliza que os trabalhadores do mercado financeiro só fazem o que é melhor para os bancos. Está errado?

O ministro Paulo Guedes tem um ódio de classe, a fala é asquerosa, é racismo declarado

Eduardo Moreira sobre a declaração do ministro citando trabalhadoras domésticas

Em outubro de 2019, ele abriu um processo seletivo para investimento em startups juntamente com dois sócios (vídeo abaixo). Porém, até a publicação deste texto, ele não havia divulgado nenhuma informação sobre os selecionados, ou os investimentos realizados.

https://youtu.be/MGR-XV6x4oM

Os brasileiros têm em comum o curioso fato de não divulgar publicamente o tamanho exato das fortunas.

Embora os investimentos sejam impressionantes, há pouca capilaridade nas ações dos bilionários. Por não haver necessidade legal de transparência – a filantropia pode ser 100% privada e sigilosa – se perde a chance de haver um controle dos cidadãos sobre como e onde estão sendo investidos os recursos.

De forma isolada ou em grupos, a filantropia é também adotada como método de elisão fiscal – espécie de manobra contábil-financeira que não fere nenhuma lei, mas acaba por gerar menos impostos para quem se habilita a financiar uma organização filantrópica. As manobras variam de país para país: pagar menos imposto dá um certo trabalho e tem um custo.

Neste ponto, as renúncias fiscais poderiam vincular a exigência da prestação de contas da verba renunciada em prol de determinado fim.

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Tiago escreve sobre tecnologia, política e desafios sociais contemporâneos. É editor e redator em Vida Indigital, e redator voluntário na Rede de Produtores de Conteúdo da Politize!, uma ONG dedicada à Educação Política. É jornalista e especialista em Ciências Humanas pela PUCRS. Trabalhou e empreendeu no varejo de livros por mais de 10 anos.
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