por Luisa Amaral, para O Joio e O Trigo
Em meio a denúncias de captura por corporações, pesquisadores procuram pautar o debate sobre alimentos ultraprocessados na Cúpula sobre Sistemas Alimentares das Nações Unidas
Ultraprocessados se transformaram numa das grandes preocupações de saúde pública do século 21. Nos últimos anos, uma série de evidências científicas fortaleceram a associação desses produtos com as doenças que mais matam no mundo (diabetes, câncer, enfermidades cardiovasculares). Logo, esse tema deveria estar no centro do maior encontro global sobre alimentação, certo? Errado.
No que depender da Organização das Nações Unidas (ONU), a Cúpula sobre Sistemas Alimentares passará à margem dessa discussão. O encontro, que será realizado de forma virtual em 23 de setembro, tem sido criticado por diversas organizações da sociedade civil e por alguns dos principais pesquisadores da área. Assim, a discussão sobre ultraprocessados é mais uma entre tantas ausências de um evento sob suspeita.
Em um artigo publicado em julho, alguns dos maiores nomes da pesquisa em alimentação cobram que os ultraprocessados sejam colocados no centro das discussões. O texto é assinado pelo pesquisador brasileiro Carlos Monteiro, junto com Marion Nestle, professora emérita da Universidade de Nova York, e outros nomes de relevo – Mark Lawrence, Christopher Millett, Barry Popkin, Gyorgy Scrinis e Boyd Swinburn.
Com o título The need to reshape global food processing: a call to the United Nations Food Systems Summit (A necessidade de reformular o processamento global de alimentos: um chamado para a Cúpula de Sistemas Alimentares das Nações Unidas), o documento, publicado no British Medical Journal, também foi enviado para representantes das Nações Unidas.
Na visão dos autores, a cúpula da ONU “tem uma oportunidade única de urgir aos países que implementem as políticas públicas necessárias para reduzir a produção, a distribuição e o consumo de ultraprocessados, em paralelo a fazer com que alimentos frescos e minimamente processados estejam mais acessíveis, disponíveis e baratos”.
O termo “ultraprocessados” foi definido pela classificação NOVA. Elaborada em 2009 por Monteiro, ela tem influenciado pesquisas pelo mundo e adquirido cada vez mais embasamento científico. Foi, também, a base para a produção do Guia Alimentar para a População Brasileira. E é uma das maiores pedras no sapato da indústria de alimentos, que já não esconde as tentativas de derrubar as diretrizes do Ministério da Saúde e desacreditar a expressão “ultraprocessados”.
Como parte das estratégias para pautar as discussões na ONU, mais de 80 cientistas, representantes de governo e da sociedade civil produziram em junho um documento no qual foram compiladas as crescentes e robustas evidências científicas sobre os malefícios dos alimentos ultraprocessados para a saúde humana e para o meio ambiente. O trabalho também contém sugestões de políticas públicas para reduzir esses malefícios e soluções para a construção de sistemas alimentares saudáveis.
O documento foi produzido a partir de um encontro organizado pelo Nupens e pela Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, ambos da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Produtos ultraprocessados não são propriamente alimentos, mas sim formulações de substâncias obtidas de alimentos por processos industriais, às quais frequentemente são adicionados corantes, aromatizantes, emulsificantes, espessantes e outros aditivos.
O seu consumo está associado a uma série de doenças não transmissíveis, como diabetes tipo 2, síndrome metabólica, hipertensão e outras doenças cardiovasculares, obesidade, disfunções renais, asma em crianças e até mesmo câncer e depressão.
Um corpo crescente de evidências científicas – que inclui diversos estudos, revisões sistemáticas e metanálises envolvendo populações variadas e diversas metodologias – tem embasado essa associação.
Essas doenças se dão por diversos mecanismos ligados a características próprias dos ultraprocessados. Diz o documento produzido pelo Nupens e a Cátedra: “Em geral, estes produtos têm maior densidade energética, mais açúcar livre, gorduras saturadas e trans e menor teor de fibras dietéticas, proteínas, micronutrientes e compostos bioativos”.
Há, ainda, uma preocupação crescente com os impactos ambientais, tanto na produção como na embalagem e na distribuição.
Como aponta Ana Paula Bortoletto Martins, pesquisadora do Nupens e da Cátedra Josué de Castro e consultora técnica do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), “não há muita indicação de que teremos o termo ‘ultraprocessados’ ou a consideração em relação ao tema entre as resoluções oficiais”. Para ela, isso se deve muito ao envolvimento dos representantes do setor privado que, de diferentes formas, estão influenciando o processo de tomada de decisão da cúpula.
Críticas à cúpula
Convocada em outubro de 2019 pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, e organizada pelos secretariado da ONU e da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a cúpula reunirá representantes de países que integram a ONU, associações de consumidores, acadêmicos, ambientalistas e agricultores, entre outros.
O encontro se dará no contexto da Década de Ação para alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável até 2030 e para discutir como a transformação dos sistemas alimentares pode contribuir para cumprir esta meta. Como preparação, houve uma pré-Cúpula, ocorrida entre os dias 26 e 28 de julho em Roma – na qual tampouco se deu protagonismo à questão dos ultraprocessados, onde o Brasil foi representado pela ministra de agricultura, Tereza Cristina.
O evento tem sido marcado por uma série de controvérsias e denúncias de que estaria favorecendo interesses corporativos, em especial desde que foi anunciada a parceria com o Fórum Econômico Mundial, organização do setor privado que representa empresas multinacionais.
Entre as mais de 550 organizações que têm denunciado o que percebem como uma captura corporativa da cúpula, está a Via Campesina. Na visão da organização, a governança da cúpula “permanece” firmemente nas mãos de um punhado de grandes empresas internacionais, de especialistas conhecidos por serem grandes defensores da agricultura industrial e de alguns Estados, os mesmos que abrigam muitas dessas empresas.
Além de promover um boicote à cúpula, entidades da sociedade civil organizaram sua própria cúpula como alternativa. Realizada entre 25 e 28 de julho de 2021, a Contra-Mobilização dos Povos para Transformar os Sistemas Alimentares Corporativos contou com nove mil participantes e fez duras críticas à cúpula organizada pela ONU, além de propostas alternativas para a criação de sistemas alimentares que beneficiem as diversas populações, e não algumas poucas empresas.
A falta de representatividade entre os organizadores da cúpula é uma das críticas feitas pela sociedade civil. “Acho que tem tanto uma questão da falta de participação de atores de governos e de representantes do Sul Global, assim como de pesquisadores e dos tomadores de decisão”, avalia Ana Paula.
Uma análise da representação da cúpula, publicada no periódico científico BJM Global Health, aponta para esse desequilíbrio e para a falta de atenção dada a questões relacionadas a direitos humanos e à desigualdade de poder nos sistemas alimentares.
A análise chama a atenção para como a proposta da cúpula de dar uma importância central a questões de justiça e equidade na reformulação de sistemas alimentares pode estar sendo comprometida pela promoção de noções muito restritas do que significa essa equidade.
Dessa forma, noções que levam em conta apenas desigualdades de renda e de acesso a certos serviços e recursos deixam de fora questões estruturais e sociais que explicam por que essas desigualdades persistem.
Essa questão está ligada à escolha de pesquisadores que compõem o comitê científico da cúpula. Dominado por economistas agrícolas e pesquisadores das ciências naturais, o comitê é marcado pela falta de profissionais que abordem, por exemplo, questões de igualdade de gênero e de direitos humanos.
Há também uma falta de representantes de povos indígenas e outros povos tradicionais que possam não apenas abordar as necessidades dessas populações, como também contribuir para o diálogo com suas perspectivas e saberes tradicionais.
Por fim, a análise chama atenção para a necessidade de levar em conta a diferença de poder e recursos entre os diferentes participantes da cúpula. Embora a cúpula ofereça diversas formas de participar do evento, essa desigualdade permite que grupos com mais poder imponham sua agenda e seus interesses.
De acordo com Ana, a questão de representação apresentada por essa análise é mais um elemento que ajuda a explicar por que não se está dando a devida importância à questão dos ultraprocessados na cúpula. Para ela, “a própria escolha dos grupos e cientistas que estão apoiando oficialmente a cúpula foi enviesada”.
Pautando o debate sobre ultraprocessados
É nesse contexto que, então, podemos entender o chamado e as críticas feitas pelos pesquisadores brasileiros para que se paute na cúpula o debate sobre alimentos ultraprocessados. Ele é essencial para a formulação de sistemas alimentares mais saudáveis e sustentáveis e que promovam também a redução da desigualdade.
O documento produzido pelo Nupens e pela Cátedra foi enviado a uma série de pessoas envolvidas com a organização da cúpula. Entre elas estão Guterres e a enviada especial da Secretaria Geral da ONU para a Cúpula, Agnes Kalibata, também presidente da Aliança por uma Revolução Verde na África (Agra), organização responsável por promover os interesses do agronegócio na África. O texto foi enviado, ainda, para representantes da sociedade civil que se mobilizaram para realizar a contracúpula.
Além dos problemas à saúde, o documento chama a atenção para questões culturais, sociais e ambientais relacionadas aos ultraprocessados. Esses produtos têm características específicas de produção, com técnicas que destroem a matriz alimentar e retiram a água dos alimentos, afetando os sistemas controladores de saciedade no organismo. Esses alimentos também passam por processos industriais que incluem a adição de compostos químicos e aditivos que apresentam riscos elevados à saúde para aumentar a durabilidade desses produtos, mudar sua forma, sua textura e seu gosto.
Alimentos ultraprocessados são vendidos em sua maior parte por um pequeno número de empresas transnacionais de grande poder e influência que se utilizam de estratégias de marketing agressivas para promover seus produtos. Essas corporações têm usado essa influência para lutar contra tentativas de regulação e distorcer evidências científicas para defender seus produtos e práticas.
E por que o consumo de ultraprocessados é parte da destruição do meio ambiente? Há cada vez mais evidências de que esses alimentos contribuem para uma demanda cada vez maior de algumas poucas espécies vegetais de alta produtividade, como milho, soja e cana-de-açúcar, que são usadas como matéria-prima para a sua produção.
Essas espécies são geralmente produzidas em sistemas agrícolas intensivos de monocultura, que têm sido associados ao desmatamento, à poluição através de fertilizantes e pesticidas e ao uso intensivo de água. Atualmente, a destruição de ecossistemas naturais para a criação de monoculturas e pasto é um dos principais fatores responsáveis pela redução da biodiversidade, e esse processo tem levado à destruição do Cerrado e à savanização da Amazônia.
Além de destruir ecossistemas naturais, esse modelo agrícola tem também substituído outras formas de agricultura que produzem alimentos para atender a padrões alimentares tradicionais. Associados a uma maior diversidade de alimentos, esses padrões variam de acordo com o local e a estação e, além de estimularem uma dieta mais saudável, também provocam menos impactos ambientais.
O comércio e o consumo de ultraprocessados também é responsável por grande parte da poluição gerada por plásticos. Atualmente, as mesmas transnacionais que estão entre as principais vendedoras de ultraprocessados são também as maiores geradoras de resíduos plásticos.
Entre elas estão a Coca-Cola, PepsiCo, Mondelēz International e a Danone, sendo a Coca-Cola a principal poluidora. Além disso, há crescentes evidências científicas de que o consumo de alimentos ultraprocessados está também ligado a um aumento nas emissões de carbono.
Propondo soluções
Os documentos oferecem também propostas embasadas em evidências científicas para reduzir o impacto dos alimentos ultraprocessados e desencorajar seu consumo e sua produção.
Uma delas é a elaboração de guias alimentares que promovam a redução do consumo de ultraprocessados. Ao apresentar diretrizes e recomendações relacionadas à alimentação saudável com base em evidências científicas atuais, os guias podem servir como referência para a elaboração de ações de educação e de políticas públicas relacionadas à promoção da nutrição, da segurança alimentar e da sustentabilidade ambiental, econômica e social.
Dessa forma, os guias podem ser elaborados com evidências científicas a respeito dos efeitos dos ultraprocessados na saúde, no meio ambiente e na sociedade, analisando os impactos dos modelos de produção, comercialização e consumo desses alimentos. Os guias também podem levar em conta fatores como culturas alimentares associadas a dietas tradicionais, estimulando a proteção e valorização dessas culturas.
Atualmente, muitos guias ainda usam uma classificação baseada na pirâmide nutricional, que separa os alimentos por nutrientes-chave, e não pelo processamento.
O Guia Alimentar para a População Brasileira é uma referência e um pioneiro nesse sentido. A regra de ouro do documento de 2014 diz: “Prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados”.
Ele já deu base para a elaboração de políticas como a normativa que, em 2016, proibiu a comercialização e utilização de recursos federais para a compra ou oferta de alimentos ultraprocessados e a normativa implementada em 2020, estabelecendo parâmetros para a alimentação escolar de alunos no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), restringindo a oferta de ultraprocessados.
O guia brasileiro também influenciou na elaboração de guias de outros países. Entre os que têm levado em conta o processamento de alimentos estão Uruguai, França, Peru, Canadá e Israel. Em 2018, foi criada uma rede internacional de guias alimentares, a partir de uma proposta da FAO para promover a criação de mais documentos seguindo esse modelo.
Outras propostas envolvem a promoção de uma rotulagem de alimentos que avise o consumidor do conteúdo nutricional e dos riscos associados a alimentos ultraprocessados.
Esse tipo de medida pode envolver a proibição ou restrição do uso de personagens, celebridades, atletas ou brindes, que são estratégias de marketing muito usadas para influenciar crianças e adolescentes – como se deu no Chile e no México.
Pode também envolver a restrição de alegações que destacam atributos positivos em alimentos ultraprocessados, como “rico em vitamina C”, que podem dar a falsa impressão de que são saudáveis.
Uma medida relacionada à rotulagem de alimentos que tem se mostrado muito efetiva em reduzir o consumo de ultraprocessados é a adoção de uma rotulagem nutricional frontal com advertências, que ajudam a informar sobre a presença de ingredientes nocivos à saúde de forma simples e fácil de chamar a atenção.
Outra proposta é a adoção do Modelo de Perfil Nutricional da Organização Pan-Americana da Saúde para a rotulagem, que usa a classificação NOVA e é baseado em evidências científicas.
Por fim, são propostas políticas públicas que envolvem a regulação de ambientes alimentares, que são aqueles onde as pessoas adquirem alimentos. Espaços virtuais também são levados em consideração. Esses espaços têm desempenhado um papel cada vez maior na aquisição de alimentos e a sua importância cresceu de forma significativa durante a pandemia.
O tipo de alimento que se encontra nesses espaços, o preço desses alimentos e a presença de publicidade ou de informações, entre outros fatores, significa que o ambiente onde as pessoas adquirem seus alimentos influencia fortemente sua dieta.
Existem, por exemplo, espaços em que o acesso a alimentos in natura ou minimamente processados são restritos, conhecidos como desertos alimentares. Há também os pântanos alimentares, que são locais onde a dificuldade de acesso a esses alimentos se combina com uma grande oferta de alimentos ultraprocessados, o que é um forte incentivo ao seu consumo.
Essas evidências explicitam a necessidade de levantar a pauta dos ultraprocessados na cúpula. Não há como falar em formular sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis sem abordar essas questões. Mesmo assim, ainda não há nenhum sinal de que esse debate será realizado. “Apesar desses esforços, a gente não viu uma repercussão e inclusão do termo nas discussões oficiais da cúpula”, afirma Ana Bortoletto Martins.