A Agência Pública divulga com exclusividade capítulo do livro Nas asas da Mamata, sobre abusos praticados por parlamentares com verbas de transporte aéreo entre 2007 e 2009
- Farra das passagens áreas envolveu 560 parlamentares investigados
- O valor ultrapassou R$ 105 milhões e nem 1% foi devolvido
- Após anos de investigação, ninguém foi punido
“De todos os inquéritos sobre as cotas de passagens, o que ofereceu mais dificuldades para acesso pelos autores do livro foi o que investigou as viagens dos convidados de Roseana Sarney”. Esse trecho integra um dos capítulos do livro “Nas asas da mamata — a história secreta da farra das passagens aéreas no Congresso Nacional” (Matrix Editora, 2021).
Ao menos 560 viajantes políticos aproveitaram verbas do Congresso no período investigado para viajar com parentes e amigos por Brasil, América Latina, EUA e Europa.
O capítulo 58, “O fim da apuração da conexão maranhense”, que a Agência Pública traz com exclusividade, é apenas uma de tantas revelações que a obra faz sobre uso indevido desses recursos públicos. Os dados são das próprias companhias aéreas, que foram obrigadas a ceder as informações em processos na Justiça Federal. O livro traz ainda revelações sobre uso de verba de passagem aérea pelo então deputado federal e hoje presidente Jair Bolsonaro.
Os autores e jornalistas Eduardo Militão, Eumano Silva, Lúcio Lambranho e Edson Sardinha investigaram, por exemplo, “os voos incomuns” dos senadores entre 2007 e 2009, em valores que somam “1,4 milhão para os cofres públicos”, diz trecho do livro.
“Diante das evidências identificadas pelos analistas, o procurador Heringer Junior concluiu não ter mais autorização legal para investigar o caso. Os desvios, entendeu, extrapolaram a possibilidade de simples improbidade administrativa, a área em que ele atuava. Também poderiam ser entendidos como crime”, revela outro trecho da investigação jornalística. O livro será lançado hoje.
Nas asas da mamata – Eduardo Militão e outros
A seguir, o capítulo inédito.
O fim da apuração da conexão maranhense
De todos os inquéritos sobre as cotas de passagens, o que ofereceu mais dificuldades para acesso pelos autores do livro foi o que investigou as viagens dos convidados de Roseana Sarney. O processo instaurado com base na reportagem do Congresso em Foco tramitou sob sigilo por 12 anos.
O inquérito civil público nº 1.16.000.000780/2009-19 foi aberto em março de 2009. Foi arquivado em dezembro de 2019, sem resultar em punição alguma. Com 437 páginas digitalizadas em formato PDF, o processo divide-se em dois volumes.
Em 2019, Eduardo Militão pediu ao Ministério Público Federal informações e cópias do inquérito. “O processo dos senadores e passagens aéreas está sigiloso”, respondeu a assessoria do órgão. Ele fez um pedido por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), também negado. Recorreu, com o argumento de que a investigação fora aberta com base no seu trabalho jornalístico.
O acesso foi autorizado em 2020, e os papéis, liberados no início de 2021. Erros técnicos nas mídias atrasaram o processo mais algumas semanas. Os documentos, enfim disponíveis, tornaram possível conhecer um pouco mais a extensão dos desvios de recursos das cotas reservadas para transporte aéreo. Desvendaram-se segredos sobre o desperdício e a apropriação, para outros fins, do dinheiro destinado a viagens dos senadores no exercício do mandato.
Até onde chegou, o inquérito confirmou e ampliou exemplos da prática de financiar voos de políticos, parentes, convidados particulares e aliados com dinheiro público. Uma agência de viagens praticamente distribuía passagens gratuitas para livre utilização pelos parlamentares e seus escolhidos.
Pelo conteúdo escandaloso do material, compreende-se a razão de se manter o processo nas sombras por mais de uma década depois de iniciado. A leitura dos documentos permitiu a reconstituição da investigação mantida sob sigilo por tanto tempo.
O inquérito contra a senadora do MDB foi aberto na Procuradoria da República no Distrito Federal em 23 de março de 2009. Ele teve como base a reportagem publicada seis dias antes, pelo Congresso em Foco, sobre a viagem dos sete passageiros levados de São Luís para Brasília, como narrado no capítulo 3 – mordomia paga pela cota de Roseana.
Em abril de 2009, a procuradora Anna Carolina Resende de Azevedo Maia ampliou a investigação para os demais senadores. Na justificativa, a representante do MPF abordou quatro pontos relativos aos fatos tratados na investigação:
- Um inquérito iniciado ainda em 2005 com dados da Gol indicava o mau uso de cota de passagens aéreas pagas pelo Senado “em relação a vários senadores” – casos relatados no capítulo 28 deste livro.
- O pagamento da cota de passagem aérea aos senadores era muito semelhante ao adotado pela Câmara; já havia um inquérito sobre a Câmara em que também se apuravam casos de “desvios” no uso das verbas.
- O Senado deveria fazer mudanças na maneira como pagava as passagens dos senadores.
- Por “medida de justiça e imparcialidade”, a investigação não poderia ficar restrita a Roseana Sarney.
Nos dias seguintes, Anna Carolina pediu informações sobre o caso ao gabinete da senadora do Maranhão, ao Senado, à Sphaera Turismo, agência que intermediava as passagens para senadores, e para a TAM. Em outra medida, Anna Carolina requisitou ao Congresso em Foco o áudio da conversa do repórter com o funcionário da agência de viagens. O jornalista atendeu à solicitação.
Desde o início das investigações, os procuradores encontraram dificuldades para obter informações sobre as passagens. A agência Sphaera Turismo se negou a fornecer os registros dos voos ao MPF depois que o senador Wellington Salgado (PMDB-MG) e a Advocacia do Senado mandaram ofícios para reclamar da investigação.
A empresa afirmou não ser possível fornecer informações sobre todos os bilhetes no prazo porque os registros dos voos dos senadores continham 44 mil documentos – uma despesa de R$ 22 milhões para os cofres públicos. Ainda como alegação para não atender ao MPF, a Sphaera afirmou ter acabado de fazer uma mudança de endereço, fato que dificultaria as buscas nos arquivos.
A empresa aérea TAM deixou de repassar apenas os dados sobre Wellington Salgado. Argumentou também ter sido ameaçada de processo pelo senador por quebra de “sigilo parlamentar”.
O advogado-geral do Senado, Luiz Fernando Bandeira, negou o compartilhamento das informações em carta enviada ao MPF em abril daquele ano. O representante do Legislativo argumentou que o uso da cota era essencial para os trabalhos dos senadores. Apurações de desvios caberiam à Corregedoria do Senado. Bandeira questionou a competência de Anna Carolina para a cobrança de informações. Contestou fatos apurados e confirmados pelos repórteres, nunca desmentidos pelos envolvidos. Posicionou-se como advogado.
“Em outras palavras, instaurou-se um inquérito para investigar supostos fatos narrados em hipotética reportagem, cujo teor é desconhecido, mas sobre a qual se devem prestar atenções. É a própria concretização do absurdo kafhiano de defender-se de acusação inaudita”, escreveu Bandeira. Depois de sucessivas prorrogações de prazos, a TAM respondeu em agosto de 2009 às principais questões do MPF sobre as cotas. A empresa aérea relatou que a Sphaera Turismo assumiu as transações em contrato assinado com o Senado em 2007. Até 23 de abril de 2009, pouco depois de o escândalo aparecer nas manchetes, os senadores ainda dispunham da comodidade de um guichê da TAM instalado na Câmara. A partir dessa data, perderam a regalia.
A companhia aérea mandou um CD com registros sobre gastos com passagens dos senadores, arquivo enviado para peritos do MPF em outubro de 2009. O primeiro relatório de análise ficou pronto em janeiro do ano seguinte. O material continha falhas, segundo a perícia, que impediam a identificação de desvios. “Falta de indicação de datas, identificação parcial dos nomes dos passageiros e ausência de dados relativos a requisições de passagens aéreas de grande número de parlamentares”, apontou o relatório.
O material era parcial por três motivos:
- Não tinha nenhum voo comercializado pela agência Sphaera com as companhias aéreas, inclusive a TAM.
- Não tinha nenhum voo do senador Wellington Salgado, que ameaçou processar as empresas.
- Só tinha voos comprados diretamente na TAM, sem intermediação da Sphaera.
Mesmo parcial, o material analisado continha elementos suficientes para demonstrar o derrame de dinheiro público. Nos registros de 2007 a 2009, os técnicos da PGR identificaram 7.186 bilhetes. Em uma planilha Excel, relacionaram os dados e especificaram as despesas de cada senador. Líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR) liderou o ranking de gastadores: emitiu passagens que somaram R$ 628 mil. Renan Calheiros (PMDB-AL) ficou em segundo lugar, com mais de R$ 500 mil consumidos em transporte aéreo. José Sarney (PMDB-AP) ocupou a terceira posição, tendo emitido R$ 485 mil em bilhetes.
Depois das primeiras medidas, o processo perdeu o ritmo nos anos seguintes e trocou de procuradores várias vezes. Entre 2011 e 2014, a investigação ficou paralisada três anos inteiros, anotou o procurador Felipe Fritz Braga.
Em 2015, o Tribunal de Contas da União (TCU) confirmou ao Ministério Público que viu desvios no uso das cotas por senadores e deputados federais. O tribunal sugeriu mudanças nas regras para a concessão de passagens.
Em junho de 2015, o procurador Douglas Ivanowski Kirchner pediu uma análise dos bilhetes aos técnicos do MPF no Distrito Federal.
A tarefa foi cumprida só em dezembro de 2016, um ano e meio depois. Coube ao analista Raimundo Anjos examinar os arquivos do Senado. Ele se concentrou nos voos entre 4 de janeiro de 2007 e 17 de maio de 2009. Resumiu tudo no relatório 22/201666.
O material processado pelos técnicos representa apenas uma fração das despesas quitadas com verbas das cotas, pois refere-se somente a bilhetes da TAM pagos diretamente pelo Senado. Não contempla passagens da mesma companhia quando adquiridas com a intermediação da agência Sphaera – que não atendeu à solicitação dos investigadores para envio dos arquivos sobre os voos dos senadores.
Também não contém informações da Gol. Ameaçadas de processo, as empresas aéreas e de turismo não repassaram ao Ministério Público as informações sobre o senador Wellington Salgado.
Mesmo parciais, os arquivos recebidos pelos investigadores compõem uma amostra significativa da intensa movimentação, financiada com dinheiro público, por balcões de companhias aéreas e salas VIP de aeroportos. A base de dados reúne 1.785 bilhetes.
No relatório de Raimundo Anjos havia planilhas anexadas. Duas eram mais importantes e foram apresentadas como anexos IV e V. A primeira tratou de viagens de senadores e terceiros. A segunda abordou os créditos acumulados pelos parlamentares ao longo do tempo. Ambas fazem parte do processo.
Dividido em colunas, o documento do anexo IV listou trechos percorridos por 35 senadores e pagos com a cota para “exercício da atividade parlamentar”. A planilha organizou um “levantamento geral” de bilhetes aéreos “por senador da República”. Contém o nome do passageiro – fosse o próprio parlamentar ou um convidado –, os aeroportos de embarque e desembarque, preços das passagens, tarifas, datas das viagens e dados para localização dos bilhetes. No trabalho dos peritos, os senadores aparecem em roteiros dentro do Brasil, na América Latina, nos Estados Unidos e na Europa. Sem totalizar os gastos, os técnicos listaram os congressistas em ordem alfabética. Como fizeram em relação à Câmara, separaram os bilhetes internacionais e os realizados no Brasil por pessoas que não eram os próprios políticos – como familiares ou amigos. A partir dos dados organizados pelos peritos, os autores do livro somaram os gastos individualizados dos senadores nesses voos – classificados como “incomuns” na tabela a seguir, montada em ordem decrescente dessas despesas.
Senadores nos céus
Despesas de senadores com passagens aéreas (1), ordenadas por gastos “incomuns”, a soma de voos internacionais e nacionais com terceiros:
Senador | Gastos com voosinternacionais (R$) (2) | Gastos com voos nacionais com passageiros que são terceiros (R$) | Gastos “incomuns” (R$) (3) | Total de bilhetes de avião |
Romeu Tuma (PTB-SP) | 309.806,44 | 6.968,89 | 316.775,33 | 89 |
Romero Jucá (PMDB-RR) | 94.524,52 | 158.796,21 | 253.320,73 | 351 |
José Sarney (PMDB-AP) | 208.560,11 | 36.224,64 | 244.784,75 | 109 |
Renan Calheiros (PMDB-AL) | 0 | 117.943,22 | 117.943,22 | 164 |
José Agripino (DEM-RN) | 114.523,44 | 3.343,24 | 117.866,68 | 25 |
Renato Casagrande (PSB-ES) | 90.712,05 | 4.605,28 | 95.317,33 | 51 |
Senador | Gastos com voos internacionais (R$) (2) | Gastos com voos nacionais com passageiros que são terceiros (R$) | Gastos “incomuns” (R$) (3) | Total de bilhetes de avião |
Heráclito Fortes (DEM-PI) | 0 | 49.574,94 | 49.574,94 | 166 |
Cícero Lucena (PSDB-PB) | 20.300,50 | 14.427,28 | 34.727,78 | 6 |
Geraldo Mesquita Júnior (PMDB-AC) | 4.708,48 | 26.262,00 | 30.970,48 | 83 |
Jefferson Peres (PDT-AM) | 4.944,34 | 25.592,70 | 30.537,04 | 26 |
Edison Lobão (PMDB-MA) | 27.486,40 | 0 | 27.486,40 | 4 |
Francisco Dornelles (PP-RJ) | 14.720,86 | 9.194,68 | 23.915,54 | 169 |
Pedro Simon (PMDB-RJ) | 20.621,18 | 0 | 20.621,18 | 3 |
Kátia Abreu (DEM-TO) | 0 | 16.561,54 | 16.561,54 | 76 |
Paulo Paim (PT-RS) | 9.090,16 | 6.914,92 | 16.005,08 | 66 |
Fernando Collor (PTB-AL) | 0 | 704,12 | 704,12 | 4 |
Euclydes Mello (PTB-AL), suplente de Collor | 15.653,24 | 0 | 15.653,24 | 2 |
Álvaro Dias (PSDB-PR) | 0 | 14.150,94 | 14.150,94 | 168 |
César Borges (PR-BA) | 0 | 11.749,64 | 11.749,64 | 56 |
Gilvam Borges (PMDB-AP) | 0 | 9.879,38 | 9.879,38 | 40 |
Geovani Borges (PMDB-AP),suplente de Gilvam | 0 | 3.112,66 | 3.112,66 | 9 |
Roseana Sarney (PMDB-MA) | 0 | 8.244,68 | 8.244,68 | 12 |
Outros senadores (5) | ||||
TOTAL (4) (5) | 941.143,69 | 533.312,46 | 1.474.456,14 | 1.785 |
Fonte: Anexo IV do Relatório 22/2016, do inquérito nº 1.16.000.000780/2009-19, da Procuradoria da República no Distrito Federal. Tabela elaborada pelos autores do livro.
Por esse critério, o campeão nas viagens foi Romeu Tuma, com gasto de R$ 316 mil, seguido por Romero Jucá, com R$ 253 mil, e José Sarney, responsável por despesas de R$ 244 mil. No total, os voos “incomuns” identificados neste trabalho representaram uma conta superior a R$ 1,4 milhão para os cofres públicos.
Quando se consideram apenas os voos internacionais, Tuma também liderou o grupo: consumiu R$ 309 mil. Na sequência, José Sarney e José Agripino foram os responsáveis pelas maiores despesas: R$ 208 mil e R$ 114 mil, respectivamente.
O levantamento dos peritos ressaltou algumas situações observadas nos arquivos. As verbas de passagens destinadas a Renan Calheiros, por exemplo, serviram a familiares e terceiros pelo menos 81 vezes entre 2007 e 2009, de acordo com o anexo IV do relatório 22/2016 do Ministério Público Federal. Parentes e convidados do senador de Alagoas usaram os créditos do ex-presidente do Senado para visitar destinos como Florianópolis (SC), São Paulo, Brasília e Maceió (AL). Em valores da época, gastaram pelo menos R$ 88 mil. A esposa do senador, Maria Verônica, utilizou 54 passagens dentro do país – ao custo de R$ 63 mil, incluindo taxas, para os contribuintes.
A senadora Kátia Abreu (DEM-TO) repassou 32 passagens da cota parlamentar para o pai, para os filhos e a neta.
Aberto para investigar viagens de convidados de Roseana, o inquérito expandiu o foco para dezenas de senadores, como vimos nas páginas anteriores. Mesmo com a abertura do leque de apuração, ficou evidente que a família Sarney, especialmente, beneficiou-se da falta de controle sobre as verbas das cotas parlamentares – conforme se viu em diferentes trechos do livro.
Os peritos e procuradores identificaram outros exemplos, no período examinado, dos excessos cometidos pelo clã maranhense no trato com as verbas do Congresso. A ex-primeira-dama do país Marly Sarney gastou 30 passagens, grande parte para destinos internacionais, como Viena, Madri, Buenos Aires, Paris, Nova York e Lisboa.
No circuito interno, os investigadores identificaram o neto Gabriel, o assessor especial Amaury Piccolo e pessoas identificadas pelos nomes como Samira Bruna, Pedro Costa e Wanderley Azevedo.
José Sarney e seus convidados consumiram, no total, pelo menos US$ 92 mil dólares em embarques para o exterior entre 2007 e 2009. Considerando o câmbio da época e as taxas de embarque, isso significou R$ 208 mil apenas em viagens ao exterior, de acordo com registros somente da companhia aérea TAM. O montante inclui os US$ 46 mil da viagem a Viena, acompanhado pela esposa, episódio tratado no capítulo 3.
O relatório de Raimundo Anjos destaca ainda um crédito no valor de R$ 191 mil para Roseana Sarney. O dinheiro foi liberado no dia 8 de abril de 2009, poucas semanas depois da viagem dos seus convidados, revelada em março pelo Congresso em Foco. O documento está inserido dentro das análises.
Para se ter uma ideia do significado desse valor, uma passagem entre Brasília e São Luís custava, em média, R$ 500,00 em 2009. Roseana Sarney, portanto, dispunha de um crédito suficiente para fazer 382 vezes esse percurso. Supondo-se que a então senadora percorresse o trecho uma vez por semana, ida e volta, o benefício acumulado permitiria três anos e oito meses de transporte gratuito.
Pode-se, ainda, fazer a conta de quanto tempo de mandato seria necessário para juntar créditos para 382 viagens. Como era permitido emitir cinco passagens de ida e volta por mês, cada senador tinha o direito, no máximo, a 120 passagens anuais.
Roseana, então, precisou passar mais de três anos sem gastar dinheiro da cota parlamentar em qualquer tipo de viagem; ou guardou créditos de milhagem ou outra forma de emissão de MCOs não identificada pela reportagem.
O procurador Hélio Ferreira Heringer Junior inseriu mais dados no processo em janeiro de 2017. Na ocasião, entre outros elementos, acrescentou detalhes sobre as viagens de dona Marly e juntou uma tabela com detalhes dos voos da ex-primeira-dama e de outros parentes de senadores. A esposa de José Sarney teve gastos de R$ 62 mil no período analisado.
Até janeiro de 2021, quando os autores do livro obtiveram uma cópia do inquérito, essas informações ficaram escondidas do público.
Com base na tabela do anexo IV, depreende-se que 812 – ou 45% – dos 1.785 bilhetes enquadram-se na classificação de viagens “incomuns”. Eles custaram R$ 1,4 milhão. Em termos de orçamento, causaram um impacto de 66% no total das verbas destinadas ao mandato dos senadores, que somaram R$ 2,2 milhões no arquivo analisado.
Como sabemos, trata-se apenas de uma amostragem do que se fez com a verba para transporte do Senado entre 2007 e 2009.
Autoexplicativa, a planilha do anexo IV permite conclusões precisas sobre os voos custeados com dinheiro do Senado. Com locais, datas e horários dos embarques e nomes dos passageiros, pode-se reconstituir parte da farra feita por políticos e convidados à sombra dos mandatos parlamentares.
A segunda planilha, apresentada no Anexo V, oferece menos segurança sobre o fluxo financeiro proporcionado pelas verbas das cotas. Primeiro, por abordar apenas os MCOs, os créditos acumulados pelos senadores com as empresas aéreas – não se refere a voos efetivamente feitos nem
fica explícito o momento em que o Senado repassou os recursos. Também não fornece dados que permitam inferir que os créditos se originem de programas de milhagens.
No mesmo sentido, algumas tabelas produzidas pelos peritos não são autoexplicativas em relação aos cálculos dos MCOs de cada senador. Como o processo foi arquivado, as dúvidas foram engavetadas.
Diante das evidências identificadas pelos analistas, o procurador Heringer Junior concluiu não ter mais autorização legal para investigar o caso. Os desvios, entendeu, extrapolaram a possibilidade de simples improbidade administrativa, a área em que ele atuava. Também poderiam ser entendidos como crime. O representante do MPF citou, ainda, as 443 denúncias criminais ajuizadas pelo colega Elton Ghersel contra deputados, como já detalhamos no capítulo 53, no final de 2016.
Amparado na perícia, Heringer registrou que ex-senadores – e eventualmente alguns no exercício do mandato – utilizaram recursos federais no custeio de passagens aéreas para atender a “interesses privados” entre 2007 e 2009.
“Tal conduta, além de constituir, em tese, prática de ato de improbidade administrativa, reparada por ação de natureza cível, é simultaneamente ilícito penal (peculato)”, ressaltou o procurador em despacho de janeiro de 201767. Ele repassou o caso a um procurador que atuava na área de combate à corrupção na Procuradoria.
Em fevereiro de 2017, o procurador Ivan Cláudio Marx enviou para a Procuradoria-Geral da República a parte dos envolvidos nos desvios que tinham foro privilegiado no Supremo Tribunal Federal (STF), ou seja, os políticos com mandato, como congressistas e ministros. Ele ficou com os políticos sem mandato. Marx listou 38 senadores que entre 2007 e 2009 fizeram “uso irregular da cota de passagem aérea”.
Segue a lista organizada pelo procurador Ivan Marx:
A pedido do Ministério Público, a Polícia Federal abriu um inquérito criminal em setembro de 2017. Assim, oito anos depois das revelações do Congresso em Foco sobre os convidados de São Luís, a PF começava uma investigação sobre a conduta de Roseana Sarney – e de outros 34 senadores. Três tinham morrido: Alberto Silva (PMDB-PI), Jefferson Peres (PDT-AM) e Romeu Tuma (PTB-SP).
Apesar do tempo passado, os policiais identificaram outras nove pessoas agraciadas com passagens da cota da senadora Roseana nos primeiros 14 dias de abril de 2009, época abordada pela reportagem do site. Eles apontaram os nomes dos beneficiados: Rafaela Murad, Maria Iracema Marinho, Ronaldo Rego, Gustavo Amorim, Ana Maria Silva, Rafael Muniz, Fernanda Muniz, Sérgio Macedo e Amaury Picollo. E traziam outra informação nova e reveladora.
Em 2019, Roseana pediu habeas corpus ao Tribunal Regional da 1ª Região. A corte atendeu à solicitação da ex-senadora e travou o inquérito da Polícia
Federal. Adotou o entendimento de “atipicidade de conduta” na investigação. Trocando em miúdos, significa que os desembargadores entenderam que todos os fatos narrados eram verdadeiros, mas não seriam crimes. Na prática, aceitou o argumento de que, pelo menos até 2009, os congressistas podiam usar as verbas de passagem como bem entendessem.
A procuradora Marcia Brandão Zollinger arquivou o caso em dezembro de 2019. Ela justificou o trancamento do inquérito policial, a rejeição das denúncias de crimes de desvio de passagens aéreas feitas pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região – tratadas no capítulo 53 – e, ainda, o arquivamento dos inquéritos no STF, feito a pedido do então procurador Rodrigo Janot.
A procuradora repetiu argumentos segundo os quais haveria regras pouco claras para verbas públicas oferecidas para os parlamentares. Entendeu que as normas do Senado, assim como as da Câmara, permitiriam os desvios apurados.
“Assim, tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Tribunal Regional Federal da 1ª Região entenderam ser o caso de rejeição de denúncias, arquivamento dos autos e trancamento de inquéritos policiais em curso, tendo em vista o reconhecimento da ausência de clareza do ato normativo que regulamentava a emissão de cotas de passagens aos parlamentares”, afirmou Marcia Zollinger.
O inquérito durou mais de dez anos, sem chegar a nenhuma conclusão. Os comprovantes dos desvios estavam em poder do MPF desde 2009. Nenhuma denúncia, porém, foi oferecida no âmbito criminal – ou mesmo no cível, para restituição dos valores.
O arquivamento do processo contra Roseana e outros 37 senadores foi confirmado pela juíza Pollyana Kelly Maciel Medeiros, da 12ª Vara Federal de Brasília. No âmbito do Ministério Público, o parecer de Marcia Zollinger foi ratificado pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF em fevereiro de 2020.
O processo contava a história de dois anos de mordomias e de desperdício de dinheiro público sob a responsabilidade de políticos.
Como visto, o inquérito dos senadores recebeu tratamento sigiloso durante mais de uma década pelo Ministério Público e pela Justiça. Agora, é fonte de informação para o conhecimento, pela sociedade, do derrame de recursos sob o pretexto do exercício parlamentar.