Dia 2 de outubro de 2023, às 13 horas e 30 minutos, os envelopes com as propostas de compra da Carris foram abertos em Porto Alegre.
A Carris foi sinônimo de eficiência há 20 anos. Porém, a estatal do município de Porto Alegre perde receita e passageiros ano a ano.
O valor mínimo esperado pela gestão do prefeito Sebastião Melo (MDB) com a venda da empresa de 151 anos era de R$ 109 milhões. Quem arrematou a companhia porto-alegrense foi a Empresa de Transporte Coletivo Viamão Ltda.
A concessão das 20 linhas operadas pela Carris vai durar 20 anos, incluindo a gestão da frota e dos imóveis.
Esta não é a primeira vez que a Carris tem controle privado.
Criada em 1872 por Dom Pedro II com o Decreto nº 4.985, a Carris passou a ser administrada por uma empresa norte-americana, a Bond & Share, entre 1928 e 1954. Após 26 anos de controle privado, e com as finanças em bancarrota, a empresa foi devolvida e reincorporada pela prefeitura em 1954, sob a gestão de Ildo Menegheti.
Em 2003, entrevistei funcionários e o presidente da Carris, na sede da empresa, para uma matéria sobre gestão pública.
Sob administração municipal, a empresa havia superado dificuldades financeiras, prestava um serviço satisfatório e mantinha os trabalhadores motivados.
Que caminhos a gestão da cidade tomou para deixar uma empresa que já foi exemplo de boa administração pública ser sucateada e vendida pelo lance mínimo?
Para entender melhor o que está em jogo na venda da Carris, e para refletir sobre o modelo de transporte público que a sociedade almeja, republicamos abaixo uma matéria que inicia com o título bastante explicativo: “Pública, social e lucrativa“, produzida há 20 anos para a revista Administração no Milênio, da Escola de Administração da UFGRS.
Acompanhe os desdobramentos da privatização dessa empresa tão significativa para cidadãos e cidadãs porto-alegrenses.
Abaixo, fique com a matéria de 2003. Boa leitura!
Pública, social e lucrativa
Da época das maxambombas (pesados carros a vapor utilizados na capital), restou apenas o nome. Hoje, a Companhia Carris Porto-Alegrense evolui ao passo do crescimento da metrópole onde nasceu.
A constatação não está apenas relacionada ao fato de que ela foi eleita duas vezes a melhor empresa de transporte público pelo Prêmio de Qualidade da ANTP (Associação Nacional dos Transportes Públicos), ou que ela é líder nas pesquisas Top of Mind. Mas diz respeito à quebra de uma visão ainda não totalmente superada: a de que uma gestão pública pode sim ser sinônimo de eficiência.
Não foi sem esforço que a companhia tomou as rédeas do seu próprio destino. Uma tumultuada sessão da Câmara de Vereadores de Porto Alegre a tornou pública em 1954, quando a empresa pertencia à americana Electric Bond & Share. Passados quarenta anos, a estatal ainda arcava com os custos de uma gestão sem indicadores de qualidade e produtividade.
E foi só com uma reestruturação do transporte coletivo da capital, ocorrida em 1995, que a Carris formatou seu primeiro planejamento com sistematização de pontos fortes e oportunidades de melhorias no âmbito estratégico, tático e operacional. A partir de então, a Companhia deixou de tomar dinheiro da Prefeitura e passou a operar no azul.
A Carris baseia sua gestão na qualidade
As semelhanças com uma empresa privada não ficam apenas no estímulo à produtividade e ao lucro. É com o foco na qualidade que a Carris quer encontrar as saídas para reduzir o passivo de R$ 12 milhões, acumulado nos anos de gestão ineficiente.
Reduzir o gasto com combustível é a principal meta para 2003. Isso envolve desde a manutenção correta dos veículos até a conscientização dos motoristas para não deixar os motores funcionando sem necessidade.
“Precisamos, também de um conjunto de obras no pátio, temos um problema judicial com um vizinho. Dizer que a empresa não tem problemas é um absurdo completo” desabafa Daniel Maia, diretor-presidente da Carris.
Por ser pública e ter a vantagem de não ter acionistas ou uma diretoria cobrando apenas o retorno financeiro, a Carris se dá o luxo – necessário – de experimentar inovações tecnológicas. Um ônibus ecológico com motor híbrido, movido a energia elétrica e gasolina, foi visto circulando pelas ruas da capital há alguns meses.
“Fizemos testes no início do ano com as linhas circulares, mas ainda não obtemos resultados satisfatórios” observa o presidente. Ele garante que não vai desistir das experiências com o protótipo híbrido, mas evita uma previsão exata para colocá-lo em circulação comercial. “Quem sabe até a metade de 2004 ele não fica como queremos?”
Tal como as empresas privadas, a Carris foi buscar sustentação para sua administração eficaz na satisfação do seu quadro de funcionários. O planejamento estratégico de 1995 também marcou o início do Programa Carris de Qualidade e Produtividade (PCPP).
O programa concede uma gratificação, ao final de cada ano, para os funcionários que tiveram um bom desempenho. Os trabalhadores podem “monitorar-se” acessando uma espécie de “ficha” pessoal virtual, através de um software específico. Ali constam todas as observações, de elogios à críticas, faltas e atrasos. E por meio dessa avaliação que a diretoria visualiza o empenho e a contribuição do funcionário para conceder o benefício.
“Ainda temos 30% dos colaboradores que não recebem esse presente”, lamenta o presidente. A política de incentivos aos funcionários também passou a contar recentemente com um curso superior de dois anos direcionado à gestão do transporte público, batizado de Universidade Corporativa Carris (UNICCA). O curso, frequentado por 60 funcionários da Carris é mais uma iniciativa da empresa que periodicamente promove cursos de capacitação, dos quais todos os funcionários participam. Sempre com a ênfase no atendimento ao cliente. “Toda a empresa tem o mesmo foco: o usuário”, explica o presidente.
A cordialidade e a pontualidade são apontados como pontos-chaves para combater um alto índice de evasão do transporte público – cerca de 3% ao ano no Brasil. Passar pela roleta e escutar boa tarde pode ser um dos motivos pelos quais a Carris é a que menos perde clientes entre as transportadoras de passageiros da capital gaúcha. “Antes (dos programas de qualidade), os passageiros eram apenas bonecos”, brinca Roni Martins, gerente de Tecnologia da Informação da companhia. Apesar do cargo, é ele o responsável pela gestão da qualidade na empresa. Na Carris não há um departamento específico para cuidar desses assuntos.
“Todos os gerentes são responsáveis pela qualidade de seus setores e respondem por isso. Se isso não acontecesse, sempre haveria o pretexto para dizer “a culpa é do gerente de qualidade quando algo dá errado, sustenta Martins.
É dentro dos coletivos que fica visível quem leva a melhor com esse cuidado todo. A satisfação dos usuários é evidente: uma reclamação a cada 27 mil passageiros transportados.
Pública e Social
Uma série de parceiras da Carris com outros órgãos públicos impulsiona a prática de políticas voltadas à comunidade. A Companhia possui 17 programas em seu leque social, abrangendo desde o apoio a entidades assistenciais, à cultura e ao meio ambiente, até a participação direta na ressocialização de meninos e meninas de rua e na reinserção de ex-apenados na sociedade. Um fundo, formado pela contribuição voluntária dos funcionários – R$ 1 de cada -, também ajuda a manter programas de amparo a instituições de caridade, como o Lar Santa Cecília e o Lar dos Cegos e do Idoso Louis Braille.
A Companhia possui 17 programas sociais
A Companhia também tem disponibilizado um ônibus para a Fundação Thiago de Moraes Gonzaga (uma entidade civil sem fins lucrativos) fazer uma “blitz” mensal pelos bares noturnos de Porto Alegre, realizando um trabalho de conscientização quanto aos riscos da mistura álcool-direção. Já com a iniciativa privada, a cumplicidade aparece em forma de pesquisas para a formulação do ônibus menos poluente, como é o caso do protótipo híbrido, desenvolvido com a Marcopolo, a Indabra e outros parceiros.
Em julho, a Carris foi auditada e conquistou a certificação ISO 9001, já nos novos parâmetros normativos. E se prepara para a obter a OHSAS 18001, que normatiza os cuidados com saúde e segurança.
Tanto esforço com resultado coloca a concorrência – outras 14 empresas, todas privadas – numa situação defensiva. É o que o diretor-presidente chama de “pressão positiva”.
“Não há sentido termos uma empresa de transporte coletivo pública se ela não pressionar positivamente as demais”, acredita Daniel Maia.
*Nota: o link para a matéria original não foi localizado. Reproduzimos aqui o conteúdo integral conforme a publicação impressa.