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Candidaturas indígenas crescem, mas enfrentam racismo e politicagem

60 anos depois de eleita a primeira indígena vereadora do Brasil, o movimento indígena vive um momento de alta na política com mais representantes nos últimos anos; campanhas ocorrem em meio a seca histórica, baixos recursos e situações de preconceito.

Por Ariene Susui, com edição de Diego Junqueira para a Repórter Brasil

SE ANTES NÃO HAVIA ROSTOS, vozes e adereços indígenas na política, hoje a realidade é outra. Desde que o movimento indígena se organizou para tentar eleger mais representantes, o número de candidaturas aumenta a cada pleito. Poucos, no entanto, conseguem se eleger.

As campanhas enfrentam inúmeras dificuldades, como o preconceito, a falta de verbas e um modo de fazer política que favorece outras candidaturas, como o uso da máquina pública.

A Repórter Brasil conversou com seis candidatos indígenas (dois a prefeito e quatro a vereador) em municípios do Norte, Nordeste e Sudeste do país, para conhecer os principais desafios das campanhas e suas expectativas na política.

Candidata a vereadora em Manaus (AM) pela Rede Sustentabilidade, Vanda Witoto diz que o preconceito e a compra de votos estão entre os principais desafios. Ela destaca que há muita violência na política partidária como parte de um racismo institucional, prevalente em espaços públicos ocupados por homens brancos. 

Em 2022, quando era candidata à deputada federal pelo Amazonas, Vanda foi hostilizada por um grupo de pessoas vestidas de verde e amarelo na chegada ao colégio eleitoral, no dia da votação. Ela estava com a sobrinha, ambas pintadas e com adereços e trajes tradicionais.

“Vivenciamos situações como essa inúmeras vezes. Este é um campo muito violento, principalmente para as mulheres. Nos desqualificam. Temos que provar que a gente tem condição de estar ali, de estar concorrendo e ser eleita”, conta Vanda.

Líder do povo Witoto, Vanda teve uma votação expressiva em 2022, com 25.545 votos, mas insuficiente para se eleger. Manaus é a cidade com mais indígenas do país: 71,7 mil pessoas, ou 3,5% da população. Ainda assim, não elegeu nenhum indígena para as 8 vagas de deputado federal em 2022, nem para as 34 vagas de suplente. A maioria eram brancos e pardos.

Vanda Witoto é candidata a vereadora de Manaus (AM) pela Rede (Foto: Divulgação)

Vanda diz que, em período eleitoral, muitos candidatos cooptam lideranças indígenas para que os apoiem em troca de favores. Por isso, ela vê sua campanha também como um ato de consciência política. 

“O que chega aos nossos territórios, comunidades indígenas e periferias da cidade de Manaus é a compra de voto, por meio das cestas básicas, da compra da receita do remédio e do botijão de gás. Esse é o mecanismo da politicagem no nosso município, é essa a estrutura colocada para o nosso povo. Então, a minha caminhada tem esse mecanismo também de educação, de consciência política, de a gente perceber o voto como um instrumento de garantia dos nossos direitos”, pontua.

A política partidária foi por um tempo um dilema para o movimento indígena, explica Kleber Karipuna, coordenador da Articulação Nacional dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Aos poucos, contudo, o movimento foi entendendo que era necessária uma participação mais organizada na política, como estratégia para defesa de direitos e territórios indígenas.

Foi assim que, em 2017, a Apib lançou o primeiro manifesto de apoio a candidaturas indígenas no Brasil, no âmbito do Acampamento Terra Livre (ATL), que acontece anualmente em abril. “Por um tempo éramos muito isentos nesse debate, mas com o tempo começamos a avaliar que era necessário estar nesse meio. Porque é ali que começamos a entender várias discussões do rumo do país e, por consequência, dos povos indígenas”, reflete o coordenador. 

Um marco desse momento foi a eleição da primeira mulher indígena deputada federal em 2018, Joenia Wapichana, pela Rede em Roraima. Atualmente ela é presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) – antes dela, apenas o xavante Mario Juruna havia sido eleito pelo Rio de Janeiro para a Câmara dos Deputados, em 1982. 

Na eleição de 2022, o movimento conseguiu eleger duas candidaturas da “bancada do cocar” para a Câmara dos Deputados: Célia Xakriabá (PSOL/MG) e Sônia Guajajara (PSOL/SP), atual Ministra dos Povos Indígenas. 

O movimento acredita que o resultado disso é o aumento de candidaturas nas eleições municipais de 2024, com 2.479 registros – 14% a mais do que em 2020. O crescimento entre os indígenas foi o único registrado entre candidatos brancos, pardos, pretos, amarelos e os que não informaram.

Esse momento ocorre cerca de 60 anos após a eleição dos primeiros indígenas. “No nosso levantamento, detectamos essa presença desde a década de 60. Tem referências históricas, como o seu Manoel Primo dos Santos disse pra gente que o melhor era me lançar porque eu não tinha problema com os brancos, muito pelo contrário, fazia diversos trabalhos de saúde para eles, então seria mais fácil vencer, nós tínhamos muitos votos”, contou.

Segundo o pesquisador, ela deixou de concorrer nas eleições seguintes alegando que seu trabalho como enfermeira e professora era mais produtivo para a comunidade. Carmelita foi eleita numa época em que os vereadores não eram remunerados e tinham que compartilhar a função com outras obrigações. Com o apoio dela, o povo Tuxá decidiu apoiar de forma coletiva nas duas eleições seguintes um outro candidato, não indígena, que foi eleito.

Entre o preconceito e a falta de verba

Apesar do número expressivo de candidaturas atualmente, o grande desafio ainda é serem eleitos. No Congresso Nacional, há 513 vagas, mas somente cinco parlamentares que se autodeclaram indígenas foram eleitos em 2022: Célia, Sônia, Silvia Waiãpi (PL-AP), Juliana Cardoso (PT-SP) e Paulo Guedes (PT-MG). Já nas prefeituras em 2020 foram eleitos apenas 8 indígenas, um número ainda pequeno frente ao total de prefeitos eleitos (5.569) e o tamanho da população indígena no país (1,7 milhão, segundo dados de 2023 do IBGE). 

Almir Suruí é candidato a prefeito de Cacoal (RO) pelo PDT (Foto: Divulgação)

Líder do seu povo desde os 17 anos, Almir Suruí, 50, dos Paiter Suruí, é candidato pelo PDT a prefeito de Cacoal, Rondônia. Assim como muitos dos ouvidos pela reportagem, ele conta como o preconceito é um dos maiores desafios de sua candidatura. Muitos chegam a questionar sua competência, seus estudos e sua técnica para gerir um município, simplesmente por ser indígena. 

“Eu tenho recebido muito preconceito, e isso me abala às vezes, dói no coração, machuca e é preciso ser forte e ter sabedoria para enfrentar isso. Eles questionam: ‘Por que o índio quer ser prefeito? Ele não tem competências administrativas’. Mas eu sou um ser humano que sente a dificuldade que sua população vive e sofre. E eu quero contribuir com isso. Com a experiência que eu tenho como líder indígena. Então, assim, claro que eu tenho capacidade! Eu fui à mesma faculdade que eles foram”.

Com 87 mil pessoas, Cacoal tem 2% de indígenas na população, 37% brancos, 53% pardos e 8% pretos, segundo o Censo do IBGE de 2022. Almir Surui (PDT) concorre com Adailton Fúria (PSD) e Celso Popó (PL).

Thárcylla Wazayzar é candidata a vereadora em Barra do Corda (MA) pelo PCdoB (Foto: Divulgação)

Já em Barra do Corda, no Maranhão, a jovem indígena de apenas 23 anos Thárcylla Wazayzar tenta pela primeira vez uma das cadeiras do município pelo PCdoB. Nesse processo ela enfrenta a barreira de ser vista como jovem demais para o cargo, mulher e indígena.

“Eu vejo que as pessoas olham para mim nesse processo, a minha idade, meu gênero,  tudo isso juntando o fato de ser indígena, as pessoas não me enxergam como um quadro preparado. Por mais que eu seja jovem, eu estou pronta. Nossa cidade ainda não elegeu uma pessoa indígena, e acredito que esse momento histórico possa ocorrer,  de eleger a primeira indígena para a câmara, para que a gente tenha voz e representatividade dentro desse espaço, para que tenhamos políticas públicas que muitas das vezes nos é negado”, diz a jovem. 

Thárcylla Wazayzar elogia o seu partido nesse processo, afirmando que a legenda garantiu que a candidatura não seria apenas para cumprir cota, como acontece com muitas candidaturas indígenas. “Eles foram cuidadosos com isso”, pontua.

Raquel Tupynambá é candidata a vereadora em Santarém (PA) pelo PT (Foto: Divulgação)

Nascida na aldeia Surucuá, à margem esquerda do rio Tapajós, Raquel Tupynambá (PT) tenta uma vaga como vereadora em Santarém, no Pará. Ela conta que o maior desafio é ter recursos financeiros para chegar aos territórios, principalmente no período de estiagem dos rios.

“Todo recurso que nós temos é recurso que entra de forma oficial, enquanto que os outros candidatos e políticos já têm suas outras formas de convencimento. Por exemplo,  com essa seca é mais difícil chegar nos territórios, falta recurso para ampliar a nossa campanha” reflete Raquel.

Marivelton Baré é candidato a prefeito de São Gabriel da Cachoeira (AM) pela Rede. Cidade tem cinco candidatos indígenas e um branco (Foto: Divulgação)

Encravada ao noroeste do país, São Gabriel da Cachoeira (AM) fica na fronteira entre Colômbia e Venezuela. É o terceiro município do país com o maior percentual de indígenas entre a população:  93% 

A questão ali não é o preconceito, já que a maioria da população é indígena, conta Marivelton Baré (Rede Sustentabilidade), candidato a prefeito. O problema, para ele, é a falta de recursos e o limite de gastos de campanha, uma regra eleitoral que pode até funcionar em algumas cidades, mas não no caso de São Gabriel, critica. 

Na cidade, para chegar a um território indígena os custos são extremamente altos, pois o município é enorme e a logística é feita totalmente por rios. O município tem seis candidatos a prefeito, sendo cinco indígenas.

“A nossa campanha é feita de forma justa, recebemos doações do nosso próprio partido, respeitando os tetos e limites que são previstos em lei. Essa campanha dá um teto para quem é majoritário de R$ 159 mil, e para quem é candidato a vereador de R$ 38 mil. Com isso, ele não consegue passar nem metade da logística que ele tem que percorrer ou por onde ele tem que andar para poder chegar ao eleitor, para poder chegar nas comunidades, nas aldeias, nos distritos”, afirma Marivelton.

Chirley Pankará concorre a vereadora em São Paulo (Foto: Divulgação)

Nordestina, e vivendo há 26 anos na maior cidade da América Latina, a líder indígena Chirley Pankará (PSOL-SP) é uma das 1.016 candidaturas registradas para concorrer a uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo. 

Ela possui uma estrutura de campanha pequena, com uma coordenadora de campanha, uma equipe de quatro pessoas na comunicação e muitos voluntários que se disponibilizaram a levar seu nome às ruas.  Ela conta que o movimento indígena de São Paulo a convidou para se candidatar por conta do seu compromisso com a causa indígena e também por sua expressiva votação em 2022, quando recebeu 27.802 votos na campanha para deputada estadual. Ela não se elegeu.

Na eleição de 2018, ela já tinha conquistado uma cadeira na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo junto à bancada coletiva ativista, que também tinha em sua composição a deputada federal Erika Hilton (PSOL/SP). A cidade de 11,4 milhões de habitantes tem 0,2% de indígenas na população, 54% brancos, 33% pardos e 10% pretos.

Atualmente candidata a vereadora, Chirley menciona que por ser nordestina em São Paulo e indígena, ela é colocada em um lugar de ataques de todos os lados. Quando entrou nesse processo eleitoral, ela sabia que não seria fácil, mas destacou que sua vida sempre foi de desafios e que esse não seria diferente. 

De acordo com a Apib, à medida que os povos indígenas avançam, os cenários de ataques aos seus direitos ficam mais graves, e por esse motivo o chamado da organização neste ano é para que as candidaturas indígenas se comprometam com o manifesto “Aldear a Política é Nosso Marco Ancestral”, que possui 10 pontos-chaves, e o primeiro é a demarcação e o combate ao marco temporal.

As candidaturas indígenas simbolizam a força de centenas de povos que por décadas sofreram com a repreensão, violência e preconceitos, avalia Kleber Karipuna. A união para eleger vereadores, prefeitos e posteriormente deputados fazem parte de uma estratégia de sobrevivência.

A Repórter Brasil foi fundada em 2001 por jornalistas, cientistas sociais e educadores com o objetivo de fomentar a reflexão e ação sobre a violação aos direitos fundamentais dos povos e trabalhadores no Brasil. Devido ao seu trabalho, tornou-se uma das mais importantes fontes de informação sobre trabalho escravo no país.
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