Por Mariana Grilli, especial para o Joio e o Trigo
Assim como alimentos transgênicos estampam na própria embalagem a informação de que são geneticamente modificados, com o símbolo de um triângulo amarelo e a letra ‘T’, há uma discussão internacional sobre a necessidade de o rótulo da carne vermelha informar a ligação daquele gado com o meio ambiente e o clima. De forma resumida, a proposta da rotulagem climática é informar ao consumidor sob quais condições o gado foi criado e os impactos ao planeta.
No Brasil, o assunto ainda está longe de ser tema central entre frigoríficos, indústria, varejo e a própria sociedade. Um dos motivos que justifica o país estar alheio a essa discussão é o fato de não haver uma meta climática específica para o setor da carne vinculada ao compromisso da descarbonização firmado no Acordo de Paris, tratado internacional que visa combater o aquecimento global e as mudanças climáticas causadas pelo homem, assinado por 196 países, durante Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP21).
Todo país tem uma meta oficial — chamada NDC — no âmbito da Organização das Nações Unidas para cortar as emissões de gases de efeito estufa. A agropecuária é o principal setor emissor dos gases poluentes no Brasil, cuja NDC prevê o corte de 48% das emissões até 2025 e de 53% até 2030, com base no Inventário Nacional de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (GEE) do Brasil, que utiliza como referência as emissões de 2005. Mesmo assim, não há mecanismos auditáveis para comprovar o quanto o segmento da pecuária contribui para a redução das emissões de gases poluentes.
Informar o consumidor se a proteína animal é livre de desmatamento, tem emissões de carbono mitigadas e é desvinculada de áreas indígenas é um dos focos da rotulagem. Para contribuir com a pauta, os pesquisadores Marília David, Maycon Schubert e Frederico Salmi se debruçaram sobre a viabilidade desse tipo de iniciativa no Brasil e, sobretudo, os requisitos necessários para alcançar esse selo.
Enquanto na Câmara dos Deputados o único debate a respeito do fornecimento de informações sobre a procedência da carne se refere à raça dos bovinos, a publicação acessada em primeira mão pelo O Joio e O Trigo aponta meios de colocar a rotulagem climática na pauta pública, fornecendo informações acessíveis a respeito das condições de criação do rebanho.
Com o título ‘Políticas de rotulagem climática para a cadeia da carne no Brasil — desafios, disputas e perspectivas’, o estudo é vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Agricultura, Alimentação e Desenvolvimento (GEPAD/UFGRS) e teve apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS).
“A questão entre pecuária e clima está na ordem do dia. Dentro dessa discussão, a rotulagem da carne é uma das estratégias que a literatura internacional destaca como forma de produzir transformações em padrões de consumo e práticas produtivas”, explica a autora Marília David, em entrevista ao Joio. “Isso tem tudo a ver com o Brasil”, complementa.
De acordo com os acadêmicos, existe uma oportunidade para organizações que atuam na intersecção dos temas entre alimentação, clima e direitos do consumidor de explorar melhor essa pauta. Além disso, apontam, o próprio setor produtivo se beneficiaria, ao distinguir pecuaristas que adotam boas práticas, considerando que a pecuária responde por 77% da área desmatada da Amazônia no Brasil e nos países vizinhos entre 1985 e 2022, segundo levantamento do MapBiomas publicado em dezembro de 2023.
“Aliada a outros tipos de intervenção, como a política nacional de rastreabilidade e o cumprimento da legislação ambiental, a rotulagem pode trazer esse duplo benefício”, sintetiza Maycon Schubert. Ele se refere à Política Nacional de Rastreabilidade Individual Obrigatória, liderada pela Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável e apoiada pela Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura.
O objetivo da Política, apresentada ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), é rastrear individualmente e de forma obrigatória todos os animais abatidos no Brasil. A proposta é, via controle sanitário e socioambiental, redefinir as dinâmicas atuais de uso e ocupação do território e de controle do desmatamento, especialmente nas cadeias de valor da carne e do couro.
Junto à rastreabilidade, na visão dos pesquisadores, um sistema de rotulagem climática para o setor da carne permitiria engajar e informar consumidores; gerar demanda pública por informações sobre as condições de produção da carne; distinguir e valorizar produtos e produtores que adotam boas práticas e estão em conformidade com a legislação brasileira e a abertura de novos mercados.
Para que um rótulo informativo se torne realidade, os autores apontam a necessidade da padronização de métricas de gases de efeito estufa, o engajamento da população por meio do letramento ambiental e o interesse de frigoríficos, varejistas e do sistema financeiro em fornecer informações verídicas.
Padronizar métricas
Inicialmente, o estudo se propunha a avaliar o desenvolvimento de uma rotulagem de pegada de carbono. No entanto, ao longo das pesquisas e entrevistas, os acadêmicos se depararam com a falta de harmonização das métricas para o cálculo do gás carbônico e metano. Este é um ponto crucial para saber sob quais condições o gado foi criado. Por exemplo, um gado criado a pasto pode emitir níveis diferentes de metano do que aquele que se alimenta de grãos e suplementação. Sem a padronização das métricas para medir os gases e sem a validação por órgãos oficiais, fica difícil oficializar a quantidade de metano emitido e o quanto o rebanho contribui para o volume de gases de efeito estufa.
Todos os gases de efeito estufa têm um valor potencial de aquecimento global, chamado de GWP. Isso mede a eficácia de cada gás em reter o calor na atmosfera da Terra. Assim, o GWP mede o quão potente é um gás como contribuinte para as mudanças climáticas. Por exemplo, o metano tem um GWP de 34. Isso significa que 1 tonelada de metano é igual a 34 toneladas de CO2.
Há variações do GWP e da forma de se calcular este potencial de aquecimento global. A métrica GWP AR5 é a considerada no relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) para elaboração do Acordo de Paris — e indica que o gás metano é nocivo. Por ser o padrão utilizado no documento da COP21, é também a metodologia defendida pelos acadêmicos para a rotulagem climática.
Outra variação é a métrica GWP*, que minimiza o peso do metano para o aquecimento global, pois leva em consideração que o gás é de curta duração da atmosfera. O pesquisador Maycon Schubert esclarece que o metano pode até permanecer menos tempo na atmosfera, conforme alguns atores da pecuária defendem, mas é 28 vezes mais poluente quando comparado ao carbono e, portanto, contribui para a elevação de temperatura do planeta.
Essa discordância entre as métricas implica complicações, por exemplo, no mercado de crédito de carbono ou metano. Isso porque, os créditos pressupõem que haverá remoção do gás poluente da atmosfera, mas é preciso esclarecer como este cálculo será feito e lastreado em qual metodologia. Do contrário, cada crédito vendido no mercado pode indicar um potencial e a finalidade de limitar o aquecimento global pode se perder.
Schubert comenta que recuperar pastagens degradadas e depois usá-las para gerar créditos já é uma prática da pecuária, mas é preciso atenção do mercado para não cair em greenwashing, exatamente porque não se tem um órgão oficial que valide o potencial de mitigação de gases poluentes a partir de determinado crédito emitido.
“Um dos pontos que a gente chama atenção no relatório é que isso pode se tornar um problema, porque não temos essas métricas harmonizadas. As métricas ainda não são verificáveis, e mecanismos de controle não estão dados. O conjunto das entidades representativas não está discutindo isso, estão focadas somente na questão da rastreabilidade”, afirma.
Essa controvérsia técnica tem efeitos políticos muito grandes. Isso porque, a depender da métrica adotada, haverá um diagnóstico diferente sobre a pecuária. Portanto, a pesquisa sugere que é preciso ter uma linha comum no país, para planejar medidas para redução de emissões.
Schubert ainda destaca que a própria narrativa da recuperação de pastagem degradada e pecuária regenerativa precisam ter dados sólidos. O governo federal afirma que pretende recuperar 40 milhões de hectares de pastagens degradadas, o que significa retomar a saúde de solos que foram empobrecidos por causa da pecuária. Embora a promessa tenha finalidade positiva, é preciso comprovação. Afinal, há uma capacidade de retenção de carbono do solo, ele diz, por isso as métricas precisam ser acompanhadas de um regramento que mantenha essa verificação de forma constante.
Outro ponto com os quais os pesquisadores se depararam é em relação à maneira como as emissões de gases de efeito estufa são atribuídas à pecuária e à cadeia da soja. Quando ocorre a conversão de floresta para pastagem e depois há o plantio da commodity, em um intervalo de cinco anos, a conta das emissões fica para a soja. No entanto, o setor está tentando empurrar o passivo para a pecuária. Logo, dentro da discordância das métricas, existe essa ‘rixa’ dentro do agronegócio — e ninguém quer se responsabilizar.
Bancos e varejos
Quem também tenta se esquivar da responsabilidade de trazer transparência à origem da carne e contribuir para a elaboração da rotulagem climática são os bancos e redes varejistas de supermercados.
Com base nas entrevistas feitas para a publicação, os pesquisadores avaliam que as demandas por responsabilização do setor financeiro ainda são muito frágeis. Isso inclui a relação dos bancos com os frigoríficos e o monitoramento dos pecuaristas para concessão de crédito.
‘A normativa da Febraban é muito incipiente, não tem muito parâmetro de como fazer essa rastreabilidade para concessão de crédito, e nos relatórios dos frigoríficos vemos que cada um faz de um jeito. Novamente, vemos a necessidade de padronização”, diz David. Aprovada em 2023, esta normativa da Febraban prevê que os bancos brasileiros cumpram requisitos mínimos de combate ao desmatamento ilegal ao oferecer crédito a frigoríficos da Amazônia Legal e Maranhão.
Quanto ao papel dos supermercados em levar informação ao consumidor sobre a procedência da carne, a pesquisa aponta que somente Carrefour, Grupo Pão de Açúcar e Assaí têm contribuído para o movimento. Isso não é por acaso, já que ambos pertencem ao varejo internacional, que tem pressionado o país a implementar uma política de rastreabilidade. “Demais grupos varejistas, de capital nacional, não apresentam iniciativas nesse sentido, tampouco participam da construção de políticas, como o da rastreabilidade da carne no Brasil”, indica trecho do documento.
Acima de tudo: saúde pública
Os acadêmicos defendem que pautar uma rotulagem climática sobre a origem da carne é uma questão de letramento ambiental. Isso significa explicar para a sociedade a que custo, financeiro e ambiental, determinado alimento é produzido. Prover esse letramento dá margem, defendem, para que o debate sobre redução do consumo da carne entre na sociedade, de forma a informá-la sobre os impactos da criação intensiva de gado ao meio ambiente. “Somos uma sociedade carnista e não conseguimos entrar numa discussão da redução do consumo da carne. Isso é uma questão de saúde pública”, argumenta Schubert.
Assim, a rotulagem ajuda a traduzir para a opinião pública os impactos do alimento no clima, auxiliando a decisão da compra e do consumo não somente com base no preço.
Marília David comenta o exemplo da União Europeia, que está pautando a normatização da rotulagem climática. “Isso é uma responsabilidade do governo, até para evitar propaganda enganosa. Por isso, falamos em saúde pública, não somente do ponto de vista nutricional, mas de pensar a segurança alimentar e a saúde ambiental”, diz.
Os pesquisadores indicam ser necessário a criação de um marco legal para a rotulagem climática. Assim, haveria caminho para pensar formas de governança desse sistema, a exemplo da certificação de orgânicos.
Uma das sugestões seria um trabalho coletivo entre produtores, vários ministérios — como Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), Fazenda e Povos Indígenas —, instruções normativas e a participação de órgãos como a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) para estabelecer critérios para o rótulo e as métricas.
A perspectiva é de um trabalho a longo prazo, que não seja criado somente para informar o mercado externo, mas dê subsídios para que os brasileiros conheçam e escolham melhor a carne a ser levada para casa.
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