Por Naira Hofmeister e André Campos para a Repórter Brasil
Entre os dias 20 e 25 de agosto, cerca de mil hectares de floresta amazônica queimaram na Fazenda Rondon, em Nova Bandeirantes, no norte do Mato Grosso. A área havia sido desmatada ilegalmente nos meses anteriores e o fogo brotou exatamente no período em que o governo do estado proíbe queimadas.
Quando a Repórter Brasil chegou à fazenda, em 26 de agosto, milhares de tocos de árvores serradas ainda estavam em brasa, provocando uma neblina artificial que dificultava a visão e fazia arder os olhos. “Se a mata foi derrubada antes, deve ser fogo criminoso”, constata Jucimar Carneiro, um pequeno agricultor que há dois anos trabalha como brigadista no Corpo de Bombeiros local e que auxiliou no trabalho contra as chamas na Rondon.
O fogo na Fazenda Rondon ajudou a elevar uma estatística catastrófica para a floresta: nos últimos 12 anos, não houve uma temporada de queimadas tão letal como a de 2022 para a Amazônia. Em setembro, o número de focos de incêndio detectados no bioma cresceu 71% em relação ao ano anterior, e agosto registrou as piores marcas de fogo desde 2010.
A fazenda Rondon não é qualquer propriedade: ao longo dos últimos dois anos ela forneceu dezenas de lotes de gado para a JBS, o maior frigorífico do planeta, que há uma década desenvolve sistemas de monitoramento para evitar compras de áreas com irregularidades socioambientais – mas que até hoje não conseguiu banir as práticas prejudiciais de sua cadeia produtiva.
No início de novembro, a JBS admitiu ter comprado 9 mil cabeças de gado de três fazendas em Rondônia com desmatamento ilegal, todas vinculadas a uma quadrilha de desmatadores cujo líder está preso, condenado a 99 anos de cadeia.
O frigorífico já tinha bloqueado a Fazenda Rondon de sua lista de fornecedores quando o fogo começou, segundo informou a empresa em nota (leia na íntegra). No entanto, antes disso, a JBS seguiu comprando da propriedade mesmo depois de ela ter sido embargada por desmatamento ilegal.
Como resultado, o frigorífico comprou gado exatamente nos mesmos meses em que a Rondon teve 630 hectares de mata nativa desmatados, entre fevereiro e julho de 2021. A fazenda ainda teria destruídos outros 369 hectares antes que o ano terminasse – somados, os desmatamentos têm o tamanho de quase mil campos de futebol.
A JBS afirma que “não compra de quem está envolvido em desmatamento e embargo ambiental”. No entanto, diz que os negócios com a Fazenda Rondon cumpriram os protocolos da empresa. “A JBS bloqueou a Fazenda Rondon em 30/08/2021. Todas as compras até essa data do bloqueio cumpriram tanto a Política de Compra Responsável da JBS quanto o Protocolo de Monitoramento de Fornecedores do Ministério Público Federal e da ONG Imaflora (Boi na Linha)”, explicou a empresa em nota.
Essa contradição acontece porque os protocolos prevêem consulta à base de embargos georreferenciados do Ibama, mas não aos dados da Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Mato Grosso (Sema-MT), que fiscalizou e enquadrou a Rondon ao longo de consecutivas operações em 2021. Segundo a JBS, a base federal “também agrega embargos da Sema-MT”, porém esses dados “não estão totalmente sincronizados”. A íntegra da nota pode ser lida aqui.
“Esse é o xis da questão. Não existe uma conversa entre os sistemas”, analisa a coordenadora do Centro de Biodiversidade da Amazônia Meridional, Solange Arrolho. “Mas nesse meio tempo, olha a quantidade de desmatamento que continuou sendo feito, olha a venda de gado e o lucro que tiveram essas pessoas e essas empresas”, complementa a pesquisadora, que é também professora da Universidade do Estado de Mato Grosso.
Com seu cadastro bloqueado pela JBS, a Pecuária Bandeirantes, que é arrendatária da Fazenda Rondon, passou a vender para um frigorífico local chamado Bonanza, cujo representante disse informalmente à reportagem que aplica controles para evitar compras de áreas irregulares. Mas após solicitar que fossem enviadas perguntas por e-mail, deixou de responder mensagens e atender a telefonemas. As perguntas nunca foram respondidas. O espaço segue aberto para manifestações.
“O embargo ocorre apenas na área em que houve o passivo ambiental, mas o nosso gado pasta há mais de 10 km em linha reta de onde ocorreu esse ilícito. Se os critérios da JBS dizem que ela não pode comprar, não compre. Não preciso vender para ela”, afirmou, por telefone, o representante da Pecuária Bandeirantes, Marcos da Rosa. A empresa nega qualquer relação com o desmatamento. Uma transcrição dos principais pontos da entrevista pode ser lida aqui.
Como a Amazônia é uma floresta úmida, ela não pega fogo sozinha. Por isso, o governo de Mato Grosso proíbe queimadas provocadas entre julho e outubro em todo o território do Estado. “Não pode, mas o povo usa porque é um trem rápido demais para fazer a limpeza de uma fazenda”, atesta o brigadista Jucimar Carneiro.
O desmatamento ilegal na área da Rondon é reconhecido pela Pecuária Bandeirantes, que arrenda a área, e por Ângelo Quixabeira, que figura nos autos de infração da Sema-MT e nos registros do Cadastro Ambiental Rural como proprietário da área. Porém, ambos dizem que nada tem a ver com o crime.
“Isso está respingando em nós, agora nós somos o causador disso? Não”, diz Marcos da Rosa, que representa a Pecuária Bandeirantes. Já o representante de Quixabeira informa que a área desmatada foi desmembrada da fazenda principal e vendida em dezembro de 2019 e que, portanto, trata-se de um erro atribuir a ilegalidade ao antigo proprietário. “As providências legais a respeito do equívoco já foram tomadas por parte dos advogados responsáveis pelas questões judiciais da Fazenda”, informa Celso Giovanni dos Santos, responsável técnico da propriedade. A íntegra de todos os esclarecimentos pode ser lida aqui.
Para se defender nos autos do processo administrativo da Sema-MT sobre as infrações, Quixabeira usou o argumento da venda dessa parte da propriedade. Porém, os técnicos do Estado não encontraram registros em cartório da venda da parcela desmatada da fazenda e concluíram que é mesmo Quixabeira o responsável. Ele foi multado em quase R$ 5 milhões.
Enxugando gelo
A multa milionária de Quixabeira, sua contestação sobre as autuações ambientais e o fato de estar vendendo gado para um frigorífico local ilustram um comportamento que bombeiros entrevistados pela reportagem – e que não podem ser identificados – dizem que é comum.
“Como os fazendeiros tem muito dinheiro, eles colocam a culpa no órgão ambiental, dizem que foi um erro dos técnicos, que o fogo não começou na propriedade. Às vezes até contratam um perito para dar um laudo contrário”, explica um desses agentes públicos.
A desculpa mais utilizada é dizer que o fogo “pulou” de uma área externa para dentro da fazenda. “Tem gente que até cava um aceiro (espécie de trincheira escavada no solo para impedir que as labaredas “saltem” de uma área para outra), mas a gente vê que é um aceiro estreito demais, feito apenas para fazer de conta”, revela o outro bombeiro.
Com essas desculpas, os fazendeiros recorrem das multas, mas seguem produzindo e, muitas vezes, não são bloqueados como fornecedores de grandes empresas do agronegócio. “Quando eles precisam finalmente pagar as multas, já passou tanto tempo do flagrante que o dinheiro que fizeram vendendo a produção da área queimada ultrapassa muitas vezes o que devem pelas infrações”, lamenta.
Trabalho preventivo
Além de combaterem as chamas quando elas aparecem, os bombeiros também atuam para denunciar fazendas onde é nítida a preparação para atear fogo.
A principal evidência dessa intenção são montinhos feitos de folhas secas, cipós e galhos cuidadosamente arrumados como se fossem uma fogueira pronta para ser acesa. Em alguns casos, as leiras – como são chamadas essas pilhas de material inflamável – são deixadas muito próximas de áreas de mata vizinhas a lavouras ou pastagens, justamente para levar o fogo até a floresta e, assim, ampliar os limites da área produtiva.
Quando se deparam com cenas assim, os bombeiros fotografam e anotam as coordenadas geográficas da propriedade e passam para a Sema-MT fazer a fiscalização.
“Normalmente o fogo é para fazer pasto ou lavoura”, diz Jucimar Carneiro, o brigadista comunitário de Nova Bandeirantes.
“Aqui, todo o acidente com fogo que você vai encontrar é causado pelo cidadão que põe fogo na área dele fora de época. É para limpar a terra e depois vender”, complementa o pequeno agricultor Messias Braz, que aprendeu a combater as chamas com equipamentos improvisados a partir de utensílios que usa na lida com a terra. No dia em que conversou com a reportagem, ele havia conseguido controlar, com a ajuda de vizinhos, um incêndio que ameaçava sua lavoura de guaraná em Vila Atlântica, mais ou menos no meio do caminho entre Sinop e Marcelândia – já estava há oito dias trabalhando contra a queimada.
“Esse ano tá sendo bem pior do que os outros”, lamentou seu amigo Paulo da Silva Rodrigues, que conta que perde o apetite e o sono durante as temporadas do fogo. “E se continuar essa secura louca, vai queimar muitos hectares ainda. Não é pouco não, é muito”, vaticinou, meses antes de a chuva começar finalmente a cair.
Publicado originalmente na Repórter Brasil por Naira Hofmeister e André Campos.
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